quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O último Natal

Pai Nosso, que estais no Céu
Santificado seja o Vosso Nome.

         Madrugadinha abafada de 28 de dezembro de 1962. Fazendo um baita esforço o velho gaúcho lentamente se acomodou  ao lado do motorista da camionete e, cabisbaixo, relutou olhar para os lados. Não tinha coragem.
       Coragem? Coragem era um predicado que nunca antes tinha lhe faltado. Entretanto, naquele momento sabia que deixava para trás os retalhos de uma vida marcada pelo trabalho pesado, lutas, dissabores, realizações e sabe lá Deus mais o quê.
       Mas era tão difícil não olhar que não aguentou  Instantes depois, como a desafiar a si mesmo, pousou os olhos na velha casa de madeira; seu castelo, o baluarte de um sonho iniciado no “osso do peito” décadas atrás.
       Da construção original, lembrou, somente havia trocado o telhado, inicialmente feito com tabuinhas lascadas. Que trabalheira deu! Na varanda viu com tristeza a mulher, a velha e tão amada companheira de todas as horas. Contemplou à distância os filhos e as noras se despedirem da parentada, da vizinhança e do compadre Vitorino, o novo dono do lugar. Estava de mudança, a primeira e a última que faria na vida. Estava de muda, de “mala e cuia”, para o Oeste do Paraná.
       O que mais lhe doía era o fato de não ter tido condições financeiras para segurar os filhos junto a si. O dinheiro sempre fora pouco, contado. O pedaço de terra, comprado há mais de trinta anos - cerca de cinco alqueires - não dava mais para o sustento da agora numerosa família. Eram no total sete filhos, sendo que os dois mais velhos tinham casado e, sem condições, se obrigaram a trazer as mulheres para debaixo do teto dos pais, como era costume. Bem sabia que não tinha alternativa alguma, pois a terra, além de “dobrada”, era pouca para tantas bocas.
       Pensava, remoía e antevia um futuro incerto para todos. Andava meio desnorteado. E assim foi até que um dos filhos trouxe a notícia da existência de um novo loteamento que estava sendo aberto no Oeste paranaense, num lugar chamado Santa Helena. Diziam ser terra boa, plana, escriturada e, o que era mais importante, barata.
       De início recusou a idéia. Deixar o Rio Grande, nunca! Ali nasceu, foi guri de estilingue e bornal,  frequentou o primário e ali se casou e criou os filhos. Imagine só ter que abandonar o rincão! Nem morto!
       Mas, sabe como é que é, a gente faz um plano, Deus faz outro e assim vai. A coisa foi apertando e o velho cerne, acuado, não teve outro jeito. Obrigava-se a ceder às evidências. Falou com a mulher, ponderaram e acabou concordando – e o coração pisado, pisado! Três semanas se passaram e o velho embarcou em caravana para Santa Helena. Viagem longa, mas absolutamente necessária. Queria conhecer de perto o local onde iria abrigar sua família e encerrar os seus dias. Pouco tempo depois estava de volta, com os papéis assinados e um sorriso amarelo na cara.
       Para a família reunida relatou que lá seria difícil num primeiro momento; tinham que começar do zero. A terra era fértil, de primeira, coberta de mato e com boas aguadas. De comodidade faltava quase tudo: de estrada a hospital! Ia ser duro, mas dava para encarar. Naquela mesma tarde falaria com o compadre Vitorino e fecharia negócio, conforme o combinado. E o combinado nunca é caro.
       Deus bem sabia que não era homem dado a queixumes, aprendera desde muito cedo a se virar com nada ou quase nada. Nunca lhe faltou coragem para enfrentar o serviço, por mais pesado que fosse. E não era só ele; a mulher também não era de se entregar por qualquer bobagem. Dos filhos, nem se fale, não tinha reparo, mesmo porque foram criados na lida, pelo exemplo e educação emanada dos pais. Assim sendo, viesse o que viesse eles dariam conta!
       Para a tradicional comilança de Natal que se aproximava matou dois porcos bem criados, fez embutidos, fritou a carne e colocou-a em latas cheias de banha. Essas iam para o Paraná juntamente com o cachorro paqueiro, ferramentas, alguma mobília essencial, roupas, utensílios de cozinha e objetos pessoais. Caso pudesse levar também o ar, as nuvens, os morros, o parreiral e o cheiro da terra, ele levaria!
       O último domingo antes da viagem foi reservado para um churrasco de patrão. Convidou parentes, amigos e vizinhos.  Era domingo de Natal, o último pisando naquele chão batido do quintal. O dia foi passando com ele ouvindo os acordes e lamentos de uma gaita bem tocada. Nem o bom vinho caseiro amenizava a dor e saudades antecipadas. No final da tarde, meio zonzo, cantou com sua voz grave canções que vinham desde a infância. Cantoria dos bons tempos de coral da antiga igreja entre os montes. Chorou, abraçado aos filhos e à velha companheira. Mas te pergunto: quem não choraria?
       Mesmo segurando o tempo com as duas mãos chegou a fatídica quarta-feira e com ela a hora da partida. Era escuro ainda quando acendeu pela última vez o tão usado fogão a lenha. Esquentou a água e preparou o chimarrão. De chaleira e cuia na mão foi para fora e sentou-se na escada. Fitava tudo com extremo cuidado, como a querer guardar cada detalhe bem lá no fundo da alma. Chorou novamente. Minutos depois estavam todos de pé, silenciosos em seus últimos afazeres.
       Um derradeiro adeus e puseram o pé na estrada. A poeira levantada pela camionete e pelo caminhão carregado com as tranqueiras até que serviam de consolo ao impedir a visão de um lar que ia ficando no passado. Olhando fixamente para a estrada à sua frente o velho gaúcho fez um juramento em silêncio: nunca, nunca mais voltaria! Doía demais! Meu Deus como doía!
       Passou aquele fim de ano em Santa Helena, em casa de estranhos. Fincou novas raízes, aprendeu a gostar do lugar e por aqui se aquietou.
       Nos anos seguintes celebrou outros tantos natais, mas na lembrança voltava ao velho quintal em Tucunduva. Revivia 1960 e o último Natal ali passado. E todas as vezes se pegava com os olhos cheios d’água. 
       Viúvo viveu de teimoso até que o Patrão do Céu veio buscá-lo em setembro de 2001. Tinha oitenta e nove anos bem vividos. O velho cerne levou à risca, amargurado até o último, a promessa que havia feito ao deixar o velho rancho em Tucunduva. Nunca mais voltou! Quem sabe agora, ao lado do Patrão Celestial,  pudesse reencontrar o ar, as nuvens, os morros, o parreiral e o cheiro da velha terra. Quem sabe... Pai Nosso Que estais no Céu...

José Augusto Colodel
Historiador
Acesse também o Blog do Colodel:
http://jaccolodel.blogspot.com/

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Plano Nacional de Cultura

Então corra, porque a Coluna vem aí!
No dia em que Foz do Iguaçu caiu sem que se disparasse um tiro sequer.


1924. Revolucionários no Marcos das Três Fronteiras, em Foz do Iguaçu.


O furdunço começou em 5 de julho de 1924, quando explodiram diversas revoltas militares por todo o Brasil.
            Para um grupo de oficiais e soldados o negócio era a derrubada do mineiro Arthur Bernardes, “eleito” Presidente da República nas eleições de março de 1922.
               Era tempo da política do “café com leite”, quando as elites políticas e econômicas de São Paulo e Minas Gerais mandavam e desmandavam, revezando-se na escolha do candidato à presidência do Brasil. Escolhiam, impunham e ganhavam.
Do outro lado, naquele pleito, numa espécie de frente de oposições, estava o advogado carioca Nilo Peçanha. Assumiu a presidência da república após o falecimento de Afonso Pena, em 14 de junho de 1909, e governou até 15 de novembro de 1910. Talvez o único mulato presidente do Brasil. Sua candidatura era apoiada pelos estados do Rio de Janeiro, de Pernambuco e da Bahia.
            Como era jogo de cartas marcadas, a oposição perdeu e explodiu então a rebelião, em gestação desde a fracassada revolta dos 18 do Forte de Copacabana.
A revolta militar teve início em São Paulo e naquela cidade os revoltosos ficaram dezenove dias, depois do que tiveram que fugir para poupar a população civil do mortal bombardeio da artilharia e dos aviões do governo.
Saindo da capital paulista a já batizada “Coluna Paulista” se dirigiu para o interior. Acossados, em menor número, os rebeldes foram derrotados em Três Lagoas (SP) e não tiveram outra escolha senão entrar em território paranaense.
No Oeste do Paraná pretendiam instalar o seu “Estado Livre do Sul” e aguardar reforços dos revolucionários gaúchos. Assim foi feito e a Coluna Paulista se estabeleceu na região
            Enquanto isso, lá no Rio Grande do Sul, mais precisamente na cidade de Santo Ângelo, um capitão de engenharia também se rebelou e aderiu à revolução – ou golpe militar? Seu nome: Luís Carlos Prestes. No comando da “Divisão Rio Grande” combateu com maestria e tenacidade as tropas bernardistas, superiores em número e equipamentos. A exemplo dos paulistas foi obrigado a recuar sob pena de destruição. Prestes atravessou parte do Rio Grande, o Oeste de Santa Catarina, o rio Iguaçu e veio dar no Oeste paranaense.
Luís Carlos Prestes (1898-1990).

Aqui chegou em abril de 1925, no exato momento em que as tropas revolucionárias vindas de São Paulo eram obrigadas a abandonar a região e seguir em direção ao Paraguai, após serem derrotadas em Catanduvas.
Entretanto, antes da derrota em Catanduvas e da chegada dos revolucionários gaúchos, muita coisa acontecera.
            No Oeste paranaense a idéia da Coluna Paulista, após ter deixado São Paulo, era a captura da cidade de Guaíra, sede da Companhia Mate Laranjeira, e dali descer em direção a Foz do Iguaçu. Antes, para ter uma base de apoio, tomaram o Porto São José, em 31 de agosto de 1924; a primeira localidade paranaense a cair nas mãos das tropas revolucionárias.
            Em Guaíra estavam aquartelados oitenta soldados do governo, comandados por um tal de Dilermano de Assis. Os rebeldes atacaram por terra e pelo rio Paraná. Venceram de vereda, pois antes do combate decisivo tiveram a sorte de aprisionar uma lancha da Mate Laranjeira, pilotada por um paraguaio. Interrogado, abriu o bico e contou tudo o que sabia; inclusive que havia sido colocada uma poderosa bomba (mina) no meio do rio e que, amarrada com arame, explodiria ao menor contato. Entregou também o código luminoso secreto que permitia somente as embarcações da empresa entrar livremente em Guaíra.

Soldados revolucionários em Foz do Iguaçu, 1924.

            Daí foi moleza. Tendo conquistado Guaíra, os revolucionários margearam o rio Paraná e capturaram Porto Mendes e o Porto São Francisco, no dia 15 de setembro. No dia 19 ocuparam Porto Britânia. Dali, uma parte das tropas foi mandada para a região de Catanduvas. Quem seguiu adiante, rumo a Foz pelo rio, foi uma pequena patrulha de dez homens, de barco, comandados por Juarez Távora.
            A patrulha avançou com todo cuidado e ao longe pode avistar o porto de Foz do Iguaçu. Como não encontrou resistência, Juarez ordenou que a lancha atracasse e que seus homens subissem em direção à cidade, tomando todas as precauções. Não foi para sua surpresa que ele não encontrou viva alma pelo caminho. O que lhe chamou a atenção foi o movimento no único edifício de alvenaria construído na cidade. Pensou que iria encontrar resistência, mas que nada! Para sua surpresa e alegria, o motivo da aglomeração era o velório de uma velha que havia morrido na véspera e que estava sendo “guardada” na cadeia local.

Tenente Cabanas (1895-1974).
            A cidade estava às moscas. Tudo obra do tal Dilermano que, tendo fugido de Guaíra, embarcou no vapor “Iberá”, em Porto Mendes. Ao aportar em Foz espalhou aos quatro cantos a notícia de que estava sendo perseguido por grandes forças e que os revolucionários estavam destruindo tudo pelo caminho. Pior ainda, vinham atropelando, degolando os soldados e civis inocentes que encontravam! Foi a conta! Pânico geral e todo mundo se bandeou para a Argentina, chorando e deixando para trás automóveis, cavalos e carroças, já que não haviam barcos suficientes para transportá-los. E Foz caiu, caiu sem que se disparasse um tiro sequer!
            Com a tomada de Foz do Iguaçu todo o Oeste paranaense ficou sob o controle das tropas revolucionárias por cerca de oito meses. Durante todo esse período cessou o comércio fluvial pelo Paraná, o que causou grandes transtornos para as populações ribeirinhas. Obrageros e capatazes também fugiram, temerosos de serem aprisionados pelos rebeldes.
Por terra ninguém se aventurava e a região ficou completamente isolada até o fim dos combates, em 29 de abril de 1925.
Anos depois vieram a Revolução de 1930, Getúlio Vargas, a tal da “marcha para o oeste”, as vendas de terras, negociatas, as companhias colonizadoras, migrantes gaúchos, catarinenses e nordestinos. Mas essa e uma outra história, uma história em movimento.

jacolodel@bol.com.br - historiador