Uma história de
missionários
e indígenas
José Augusto Colodel
José Augusto Colodel
Parte II
Ano da Graça de 1608: reunião da alta cúpula da Igreja Católica espanhola, mais precisamente da controversa Companhia de Jesus. Agenda concluída e os jesuítas [1] recebem ordens diretas para cumprir importante agenda na América espanhola, com o objetivo de conduzir
os indígenas para a fé cristã. Essa era a idéia, mas a prática revelou-se
bem diferente. Grandes obstáculos precisavam ser superados. Dentre tantos, a maior dificuldade encontrada pelos religiosos residia no fato
de que a clientela – leia-se os milhares de índios guaranis que habitavam a
região – vivia de maneira dispersa, perambulando de um lugar para outro. Não
tinham residência fixa, se assim podemos dizer.
Mas o trabalho espiritual não podia ser interrompido. Aquela gente sem alma tinha que ser convertida! Então qual foi a estratégia adotada
pelos jesuítas franciscanos e dominicanos? Simples até. A criação de Reduções, as tão famosas Reduções
Jesuíticas! Aldeias criadas com o intuito de concentrar em seu espaço tipo urbano o maior número possível de indígenas. Concentrar, educar, controlar, eis a boa nova!
Convenhamos, a religião sempre foi um tremendo instrumento ideológico de dominação!
Convenhamos, a religião sempre foi um tremendo instrumento ideológico de dominação!
O historiador Darlan Marchi descreve o plano urbanístico das reduções, alertando que ele variava em muitos poucos detalhes entre uma e outra.
O modelo padrão consistia em uma rua principal que dava acesso à Igreja que era o prédio mais importante de todo povoado. No centro ficava a praça onde ocorriam as encenações religiosas e as festas populares. Em torno da praça ficavam alinhados os blocos de casas dos índios de forma ordenada, o que permitia o crescimento planejado do povoado. Junto a Igreja ficavam os prédios utilizados pela comunidade. De um lado ficavam a casa dos padres, as oficinas e o colégio, todos com amplos espaços e grandes pátios internos. Do outro lado da igreja ficava o cemitério e o cotiguaçu (casa que abrigava os órfãos e as viúvas). Atrás da Igreja ficava a quinta dos padres onde eram cultivadas hortaliças e árvores frutíferas. Ainda, na periferia das reduções, encontravam-se fontes de água, olarias onde se fabricavam os tijolos de barro chamados adobe e as telhas que serviam para a construção das casas, além de curtumes, açudes, capelas, estâncias e ervais (http://www.cantomissioneiro.com.br. Acesso em 10de maio de 2012).
Esclarecemos que a área de atuação
das ditas reduções era a chamada Província
do Paraguai. Entenda-se que a palavra Paraguai
designava no século XVI toda a bacia dos três grandes rios que convergem
para o Prata, até aos Andes, do Chile ao Peru, para o interior da
Bolívia, do Brasil e do Uruguai e mesmo dos Pampas ao sul de Buenos Aires, até
aos confins da Terra de Magalhães. Haja terra! Tudo espanhola, de acordo com o Tratado de Tordesilhas.
Já a origem das reduções remonta a 1603
quando o governador Hernán Arias de Saavedra reuniu os prelados do território
de Assunção com a intenção de pedir ao Conselho das Índias e ao rei da Espanha
a vinda de missionários jesuítas para a região com o fim de evangelizar os
índios guaranis e promulgar leis proibindo
a escravização destes. Também tinha em vista a orientação espiritual e moral dos
colonos, é claro.
Quando nos
detemos para observar o caráter organizacional das reduções jesuíticas no
Guairá de pronto sobressai-nos a do modo de vida comunitário quando
tratamos das relações sociais ali estabelecidas. Por exemplo, todas as terras
eram trabalhadas em regime comunal, sendo que o produto colhido – milho ou
mandioca – era repartido entre todos os membros da redução. Havia também a
criação de gado, que era feita em pastos comuns até o momento em que era
abatido. A carne e o couro eram distribuídos igualmente entre todos.
Homens e mulheres
tinham que realizar tarefas determinadas. Os homens tinham como centro de
interesse a agricultura e a criação de gado, dentre outras. Já às mulheres era
reservado o trabalho de artesanato. Além da alimentação, também eram elas que
proviam a redução das peças de vestuário, aproveitando peças de tecidos de lã e
de algodão, feitos ali mesmo. Na verdade, a Redução era quase autossustentável,
já que tinha entre os seus membros artesãos, carpinteiros, pedreiros, tecelões,
pintores, ferreiros, estatuários e fundidores.
Quem se
encarregava de toda a área educacional eram os padres, afinal a catequese dos
indígenas era o seu principal objetivo. Das aulas todos os membros da redução
tinham que participar não importando se fossem crianças ou adultos. Os adultos
tinham suas aulas em horários especiais, quando estavam livres dos seus
afazeres diários.
Planta básica de Redução Jesuítica na Província del Guairá |
Toda a safra
colhida era depositada em grandes barracões, espécie de armazéns gerais. Ali
ficavam bem abrigados das intempéries os produtos colhidos, retirados somente
para o consumo dos moradores da redução ou para serem vendidos ou trocados por
outros gêneros.
Mas, como diz o dito, tudo que é bom dura pouco. Assim, não demorou muito tempo e os
espanhóis que moravam em outras comunidades começaram a ficar enciumados com a
prosperidade alcançada pelas reduções jesuíticas. As reduções haviam se
estabelecido e se firmado como concorrentes comerciais dos mais fortes e
atuantes. Além disso, estavam centralizando grandes contingentes de mão de obra
indígena, que preferia ficar sob a guarda dos padres do que sob a chibata
dos aventureiros-militares espanhóis. Esses, que se consideravam os verdadeiros
súditos do Rei de Espanha, não se conformavam com essa situação e logo tomaram
medidas drásticas a respeito.
E o desfecho não poderia ser mais cruel. As reduções jesuíticas estavam, sem
que os padres da Companhia de Jesus tivessem a menor desconfiança, com os anos
contados. Entretanto, a ciumeira dos aventureiros espanhóis não foi nada quando
comparada com a avidez portuguesa por aquelas terras e por escravos. Mas, como
todos já devem saber, essa é outra história.
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[1] Os jesuítas eram a mão de obra espiritual da Companhia de Jesus, fundada em 1534 por Santo Inácio de Loyola. Em poucos anos conquistou grande prestígio pelo sólido preparo cultural de seus membros, que ascenderam a posições de destaque no clero e nos conselhos de reis e príncipes. O Ordem representou a vanguarda religiosa em seu tempo, contando com privilégios especiais e grande independência da estrutura hierárquica católica, mas votando obediência total ao papa.
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