segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Na falta de hospital,
que tal o Hotel Webber?

Vista do primeiro hotel construído na cidade de Santa Helena. Tinha dois pisos e pertencia inicialmente a Antonio Thomé, que o vendeu naquele mesmo ano para Orlando Webber. A residência em primeiro plano pertenceu a João Marcelino Madalozzo.

            Já eram mais de três horas da matina e o lugarejo encontra-se profundamente adormecido e às escuras. Pelas ruas viva alma. Como pano de fundo, em sentinela, uma prateada e brilhante lua cheia - sonho de qualquer astrônomo amador.
            Nesse exato momento, diante da portaria improvisada do Hotel Webber, na pequenina cidade de Santa Helena, em plena Avenida Brasil, um colono esbaforido encosta a carroça. Acompanha-o a mulher, vinte e três anos e grávida de nove meses, na bica para ser mãe pela segunda vez. O marido, agitado pra chuchu, vem em busca de socorro médico naquela madrugada abafada do longínquo verão de 1963.
Havia chovido forte durante toda a manhã e parte do dia anterior e uma espessa e pegajosa camada de lama avermelhada cobria ruas e estradas, tornando-as praticamente intransitáveis. A bem da verdade, que se diga que até o momento em que as primeiras ruas da cidade foram asfaltadas, lá por meados da década de 1970, a lama e o pó se revelavam um tormento para o dia a dia da população local; principalmente para as donas de casa que sofriam derrota após derrota na inglória guerra de manter a casa limpa.       
Desde o ano anterior, 1962, Santa Helena era distrito de Medianeira e a principal avenida, a exemplo de tantas outras cidades do Oeste paranaense, fora batizada de Brasil. O núcleo urbano era parte do projeto colonizador levado a efeito pela Imobiliária Agrícola Madalozzo, com sede na cidade de Erechim, lá no Rio Grande do Sul. No vilarejo propriamente dito existiam poucas casas, na maioria moradias de madeira, muitas das quais erguidas pelas mãos de alguns hábeis carpinteiros tais como o Primo Alfredo Zanetti.
O Hotel Webber, também levantado com madeira de lei, foi construído e inaugurado em 1958. Pertenceu inicialmente a Antonio Thomé e em 1960 foi vendido para o comerciante Orlando Webber. Na primeira eleição direta para prefeito, em 1968, ele formaria chapa com Arnaldo Weisheimer, na qualidade de seu vice, sagrando-se vencedor daquele pleito.
            Além do Hotel Webber, existia na sede do então distrito o Novo Hotel Frank, também de madeira e dotado de dois pavimentos.  Após a criação e instalação do município ele foi alugado à municipalidade e abrigou durante algum tempo no andar térreo a Prefeitura e no primeiro andar a Câmara Municipal.
            - Desculpe seu eu te incomodo a estas horas, seu Orlando. O doutor Miguel se encontra? Ele precisa atender a minha senhora, que está para ter neném a qualquer momento. Depressa, por favor, que ela tá ali na carroça gemendo de dor. Nós ia se virar com a parteira, mas ela teve que acudir alguém lá pelas bandas de Sub-Sede.
            - Ele tá dormindo. O senhor aguarde aí que eu já vou chamá-lo.  Foi dito e feito.
            O Dr. Miguel Correia Martins foi o primeiro médico formado a se estabelecer em Santa Helena. Ele chegou nos idos de 1963, recém-casado e com o diploma fresquinho debaixo do braço. Até poder instalar-se em seu próprio consultório, ele clinicou regularmente ali mesmo no Hotel Frank. Atendia num quarto que para ele foi especialmente reservado. Quem o ajudava, fazendo o papel de enfermeira, era sua jovem esposa Alice.
            Pois é, foi naquele quarto de hotel, privado de quase todos os recursos e equipamentos, que os moradores de Santa Helena receberam os primeiros serviços de atendimento médico. Mas que não se enganem, pois ali foram realizados até mesmo procedimentos cirúrgicos complicados, tais como amputações, ataques de animais, facadas e a extração de projéteis de armas de fogo.
            Quando o caso era mais sério e requeria cuidados especiais, os pacientes tinham que se deslocar até Marechal Cândido Rondon. Naquela cidade eram atendidos no Hospital e Maternidade Filadélfia, inaugurado em 1954 e dirigido pelo doutor Freidrich Ruppecht Seyboth.
            Assim sendo, não era raro que o Dr. Miguel atendesse casos como esse e tantos outros madrugada afora. Já estava acostumado, dadas as dificuldades iniciais com que se deparava o jovem aglomerado urbano, carente de quaisquer comodidades. O fato de atender alguns de seus pacientes nas dependências do hotel não causava nenhum constrangimento. Para os moradores, o importante é que contavam regularmente com assistência médica qualificada, com um médico que residia permanentemente em Santa Helena. Verdadeira conquista quando quase tudo faltava e quase tudo era necessário.
            Para alívio de todos o parto transcorreu na mais perfeita tranqüilidade. Tanto o foi que algumas horas depois a paciente pode retornar para casa, toda enfaixada, em quarentena, carregando em seus braços uma rechonchuda garotinha, mais tarde batizada de Luiza. E quanto aos honorários médicos? Uma parte em dinheiro vivo e a promessa de que o restante seria pago dentro de algumas semanas, como de fato o foi. Acerto sem notas ou recibos, tudo no fio do bigode. Que saudades daqueles tempos quando a palavra de um homem valia muito mais do que qualquer documento!
            E quanto ao doutor Miguel Correia Martins? Bem, ele permaneceu clinicando em Santa Helena até o ano de 1975, quando se mudou para o Mato Grosso.
Antes disso, porém, ele fundou o Hospital Santa Helena, em sociedade com o Balduíno (Pitt) Dietrich. Construído defronte à Praça do Colono ele foi vendido em 1974 para os doutores Afonso Lanner, Edemar Stieven e Fernando Yamamoto, dando origem à Policlínica Santa Helena. Mas essa é uma outra história.


Vista parcial da Avenida Brasil, em 1962. Da esquerda para a direita: residências de Armando Cattani, Ângelo Cattani, Dionísio Pratti, Carlos Pomagerski e Theodor Schierholt.

jacolodel@bol.com.br - historiador

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Num tempo em que a
Ponte Queimada ainda era coberta
Até ser incendiada pela Coluna Prestes um abrigo seguro aos viajantes

       Fim de tarde frio, de tempo carregado e céu encoberto, lá por meados de junho de 1909. Pela picada sem cuidados, serpenteando a exuberante mata nativa, fechada e ainda praticamente inatacada, sacoleja um desajeitado carroção repleto de erva-mate. Vem puxado por uma junta de bois e tem na boleia dois mensus paraguaios - guaranis modernos que trabalham como peões numa das grandes obrages espalhadas pela Região Oeste. Mão de obra quase servil, tratada cruelmente, na base do winchester, do arreio e do chicote! 

Estado atual das raínas da Ponte Queimada
         Os moços haviam saído faziam dois dias da Central Barth e tinham destino certo: o porto fluvial de Santa Helena, na margem do rio Paraná e de propriedade de Domingos Barth. Dali a preciosa carga seria embarcada num dos vapores que semanalmente seguiam para o Corrientes ou Missiones, em território argentino.
       Vale dizer que por essa época e por muitos anos ainda a navegação pelo Paranazão era totalmente controlada pelos obrageros. Embarcação com bandeira brasileira por ali não existia! Já a Central Barth, uma espécie de depósito geral embrenhado em meio à floresta subtropical, era o local onde vários galpões de madeira armazenavam mantimentos e principalmente a erva cancheada, retirada nas redondezas. Ali estava a tão famosa central – ponto de apoio muito cobiçado pelos viajantes - localizada em terrenos que quase um século depois pertenceriam ao futuro município de Cascavel.
       Tanto o porto de Santa Helena e a Central, como o nome mesmo diz, também pertenciam ao obragero argentino Domingos Barthe. Seu único interesse, como o era o de todos os obrageros, era o lucro fácil obtido através da exploração das aparentemente inesgotáveis reservas de madeira de lei e de erva-mate do Oeste paranaense. Para tanto, desde o início do século XX, ele havia adquirido junto ao Governo do Estado do Paraná, a preço de chinelo, cerca de 60 mil hectares de terras. Gigante fundiário esse tal de Barth, com seu império se estendendo desde Guarapuava até o rio Paraná!
       Voltando àquela tarde, os mensus prosseguem em sua viagem rotineira, impotentes e humilhados pelos mecanismos de exploração e cobiça dos quais eram as maiores vítimas. Internados na mata úmida guiam o carroção em seu passo lento, cigarro de palha pendurado no canto da boca. Ainda estão distantes cerca de dois quilômetros do rio São Francisco Falso quando se veem debaixo de uma garoa enjoada, daquelas de encharcar as roupas e gelar os ossos.
       Chuvinha fina, acompanhada de um vento cortante que vinham em má hora. Chuva inconveniente, mas os paraguaios levam a sorte a seu lado, pois para atravessar o São Francisco fora construída a mando de Domingos Barthe uma imponente ponte de madeira, que ficaria conhecida para a história como “Ponte Queimada”. Ponte antiga, datada de 1900. Sólida, com pilares de pedra e bom madeirame, era o lugar ideal para passarem a noite, se protegerem da chuva, das cobras e das pintadas que perambulavam pela região.
       O manto negro celeste já reinava quando dão com a ponte – imagem silenciosa e tão bem vinda. Ali está ela, estranhamente iluminada. Encostam o carroção, desencilham os bois, dão-lhes de beber e comer e vão ao encontro da claridade mortiça. Adentram cautelosos e vislumbram dois outros paraguaios, proseando em guarani, chimarreando e fumando sob a luz de uma lamparina à base de graxa de capivara. Sossegam e relaxam os nervos. Na conversa entabulada descobrem que os outros fazem o caminho de volta, saindo de Santa Helena rumo ao encontro da ilex paraguaiensis, nosso ouro verde. Naquela noite não dormirão ao relento, mesmo porque a ponte é coberta em toda a sua extensão por um telhado, em duas águas, feito com tabuinhas lascadas.

Memorial homegeia a passagem
 da Coluna Prestes por Santa Helena


       Anos mais tarde o tal telhado, meio apodrecido e judiado pelos ventos, foi retirado e não mais colocado, para o desencanto dos mensus e dos raríssimos viajantes que percorriam a região e que careciam de abrigo.
       Quanto à ponte, a original foi deliberadamente queimada em 1924 pelas tropas da Coluna Prestes, derrotadas na batalha de Catanduvas e que se retiravam apressadamente do Oeste do Paraná, tendo em seus calcanhares os soldados do General Rondon. Cinco anos mais tarde, em 1929, a ponte foi reconstruída pela Companhia Espéria, dando tráfego regular até 1933, quando uma enchente a destruiu. Ela ficou no esquecimento até o ano de 1957, quando foi reconstruída pelo governo paranaense. Em 1970 passou por reformas que visavam torná-la mais segura. Para tanto, seus pilares foram levantados em 80 centímetros. Meses após a reforma desabou sob o excesso de carga e má construção. Sofreu então a sua última restauração, levada a cabo pelo Departamento de Rodagem. Finalmente, em 1982, com a criação do reservatório da Itaipu Binacional foi desmantelada e definitivamente abandonada. Nas proximidades foi erigida uma nova ponte, de concreto, que desde então vem sendo utilizada.
       Vem daí que da velha ponte, coberta com tabuinhas, abrigo histórico e seguro para os mensus e viajantes que palmilhavam o Oeste paranaense, sobreviveram somente as ruínas solenes de seus vetustos pilares de pedra.
José Augusto Colodel
Historiador