quarta-feira, 3 de agosto de 2011

NA ENCRUZILHADA ENTRE A VIDA E A MORTE, VIDA QUE EMERGE

Senhor São Bartolomeu,
se vestiu e se calçou, seu caminho bendiou.
- Por onde vai senhor, São Beto?

- Vou em busca de Vós, Senhor.

- Tu comigo não irá.

- Tu na casa de fulano ficará.

- Na casa em que vós estiverdes não morrerá mulher de parto nem menino de abafo, nem fogo levantais. 

Paz, dom, misericórdia
.

O bom e velho relógio do tempo para seu ponteiro em 1961. O ponteiro dos segundos escolhe o local: um ranchinho de pau-a-pique onde se ouve à distância um choro estridente, reclamar típico em recém-nascidos. É vida que  emerge e exige seguir seu curso.
Imagine só, ali, no que é hoje a comunidade de Correia Porto, em Santa Helena, longe de tudo e de todos, uma nova vida desperta sob o testemunho solitário de três pares de olhos, ansiosos e alegres. Dos presentes, a única pessoa que se mantém absolutamente calma é uma jovem senhora, atarefada entre chás, panos limpos e bacias de alumínio cheias com água quente. Mulher conhecidíssima e afamada e que atende como “dona” Delfina. O sobrenome é Dillemburg. Chamada às pressas está a serviço, indispensável nessas paragens, exercendo os misteres de parteira.
Delfina é uma das muitas parteiras que emprestam seus conhecimentos em Santa Helena. Aliás, é fato que existiram parteiras em todos os municípios oestinos, atuando em todos os recantos, prestando inestimáveis serviços à coletividade.
Na tradição regional receberam também a alcunha de “curiosas” ou de “aparadoras” e seus misteres são tão antigos quanto à própria humanidade. Que se diga ainda que através da história foram perseguidas,  incompreendidas, combatidas e caluniadas. Muitas vezes consideradas ignorantes e perigosas para a mãe e à criança. Na Idade Média chegaram a ser queimadas, tidas como bruxas, nas milhares de fogueiras acesas pela Inquisição “purificadora” promovida pela Igreja Católica.
         Dona Delfina era gaúcha de nascimento e veio de muda para Santa Helena em 1958, casada com Leopoldo Edvino Dillemburg.
         Nem bem chegou e já começou a ser procurada para prestar auxílio nos primeiros partos que tiveram lugar na cidadezinha de Santa Helena e arredores. Médico e hospital não tinha! O que fazer então? Tradição é tradição e a solução encontrada pelos moradores era apelar para as parteiras. Assim sendo, a presença da dona Delfina era como uma bênção para aquela gente que vivia quase que completamente isolada no novo núcleo colonial.
         É bom que se diga que Delfina não era marinheira de primeira viagem no delicado ofício de parteira. A função – ou seria vocação? - ela iniciou alguns anos antes ainda lá no Rio Grande do Sul, quando deu assistência e observou de pertinho parteiras já bem calejadas suarem para trazer ao mundo dezenas de crianças. Depois de auxiliar em tantos partos, confiante, começou a trabalhar por conta própria, e não parou mais. Era vocação mesmo!
         Na Santa Helena da década de 1960, quando era chamada para atender alguma senhora prestes a ganhar neném, era obrigada a recorrer ao jipe da Colonizadora Madalozzo. Ajeitava o motorista, pegada a estradinha e ia até onde dava para entrar. Quando o carro não podia mais avançar terminava o trecho a pé mesmo. E assim era, seja de dia, seja de noite, faça chuva ou faça sol, porque criança pra nascer não escolhe a hora e nem espera a vontade do tempo.
         E assim foi, primeiro com o jipe da Madalozzo, depois com uma charrete e mais tarde de táxi. A condução não importava, o que valia mesmo era não faltar ao compromisso, quase nunca previamente agendado. Além desses meios de transporte, as parteiras se utilizavam ainda de cavalos, peregrinando e sacolejando por estradas esburacadas e picadas intransitáveis.
         Chegando à casa procurava de imediato acalmar a “paciente”, servindo-lhe chás caseiros. Os mais comuns e eficazes eram os de laranjeira e de manjerona. Ia além. Dependendo do caso, tinha que agir como psicóloga sem diploma, tranqüilizando as gestantes que, pela inexperiência do primeiro parto, eram acometidas de crises nervosas.
         Como toda parteira que se preze, não fazia cesárea ou qualquer tipo de procedimento cirúrgico. Não se sentia habilitada. Quando a situação era por demais complicada, dona Delfina não corria riscos desnecessários para a gestante ou para o bebê. Não titubeava e os acompanhava até Marechal Cândido Rondon, onde deixava mãe e filho aos cuidados do doutor Freidrich Ruppecht Seyboth, lá no tradicionalíssimo Hospital e Maternidade Filadélfia.
         Pelo serviço que fazia dona Delfina, assim como as demais parteiras que atuaram em Santa Helena e região, não tinha o costume de cobrar nada. Às vezes, como retribuição espontânea, levava para casa, a tiracolo, um pouco de feijão, uma galinha, um leitãozinho, uma lata de banha ou outro produto qualquer. Partia e olhava para o pai aliviado, que acenava faceiro, mostrando os dentes em meio a um sorriso de orelha a orelha.
         Mas ela não foi a única.
         Muito antes da dona Delfina, outras parteiras atuavam em Santa Helena, mais especificamente em Santa Helena Velha, nas proximidades do Paranazão. Foi o caso da dona Genoéfa e da paraguaia dona Máxima.
         Vale dizer que na grande maioria das comunidades interioranas havia uma parteira que dava socorro às parturientes locais. Assim, correndo o risco da omissão pela falta de informações, podemos citar algumas outras parteiras importantes: Otacília Resner (São Clemente); Marcela Simonetti (Vila Celeste); Constantina Colombelli (Santa Helena Velha); Matilde da Rosa (Santa Helena); Teresa Andresa (Porto verde); Maria Odete e Sousa  a dona Nena (Correia Porto); nona Thomé e Aurélia Zanetti (Dois Irmãos); Joana Marcon (Santa Helena) e Tereza Jost (Santa Helena).
         A partir do final da década de 1960, quando vieram para Santa Helena os primeiros médicos e desenvolveram-se os serviços hospitalares, o trabalho das parteiras foi diminuindo.  E as bondosas senhoras, foram se retirando de cena, aquietando-se em seus cantos, com suas famílias. Deram passagem ao progresso nos serviços médicos, mas não foram esquecidas. Continuam na memória de milhares de mães.
            Missão cumprida, Delfina Dillemburg mudou-se para a cidade de Foz do Iguaçu no início da década de 1980, onde veio a falecer. Ah, quase esqueci de mencionar que ela fez quase mil partos! Precisa dizer mais?