quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Sobre o homem que driblou a morte e o tinhoso!



         Quando o falecido João Moreira Lopes me contou sua história eu ainda estava engatinhando nas pesquisas sobre os conflitos de terras no Oeste paranaense – iniciadas e, confesso, até hoje em grande parte inacabadas.
         Se bem me lembro foi em 1988 quando conversamos pela última vez. Morava, naquela oportunidade, num casebre de quatro cômodos, coberto com pedaços de folhas de amianto, na zona rural de Marechal Cândido Rondon. No quintal mantinha como reféns algumas galinhas caipiras, um cachorro paqueiro e, num cercado mal feito, dois porcos magérrimos. Fora homem casado, melhor, amancebado, por duas vezes. A primeira companheira o trocou pelo filho do vizinho e os dois fugiram mundo afora; a segunda morreu de “nó nas tripas”, de acordo com o velho posseiro. Lembro bem que já naquele ano o João Moreira trazia no rosto os sulcos reveladores de uma vida sofrida, povoada por reveses quase insuperáveis. Mas que se diga, era velho de fibra, um cerne.
         Veio de Capanema para Santa Helena por volta de 1961, anos antes da criação do município. De bagagem nadinha de nada e a jovem companheira a tiracolo. Contava com 52 anos e ainda acalentava em ter seu pedacinho de terra, um bocadinho que fosse só seu.
         Como tinha pouco dinheiro comprou o direito de posse de um conhecido e se instalou lá pelas bandas de São Clemente. Derrubou o mato, limpou o terreno, construiu um ranchinho coberto de folha de palmeira e plantou algum milho e feijão, só para consumo. Imposto ele pagava o rural para a Prefeitura de Rondon. E ali foi vivendo, ou melhor, sobrevivendo ao Deus dará.
         Vida dura, porém sossegada. Sossego que teve fim em 1964 quando teve início um projeto colonizador ambicioso na região. Era a tal da “Londoeste”, cuja base física era composta por terras com titulação inexistente, bitituladas e muitas posses, principalmente posses. Era o caso do João Moreira e o de centenas de moradores em São Clemente (hoje Distrito de Santa Helena). Um barril de pólvora com sete mil hectares.
         Contou-me que já na primeira conversa com o pessoal da firma ele foi “encostado no canto”.  Uns tipos perigosos, “quebradores de milho” como se dizia na época. Mostrou a papelada que tinha. Disseram que ele não tinha documento sério, que era posseiro e que não tinha direito a nada. Escritura só eles davam. Ou comprava a terra ou caía fora. Comprar com o que? Nem economia tinha!
         Desconversou; não disse que sim, nem disse que não. Foi para casa ressabiado, pois sabia por experiência que eles iriam voltar. Gente assim, pensou, tem negócio assumido e não aceita um não como resposta. E não deu outra! Dois dias depois, já noite alta, voltaram. Chegaram de mansinho e de vereda tocaram fogo no ranchinho, e enquanto a casa ardia descarregaram revólveres e winchesters na tapera. Estavam em quatro e não se deram ao trabalho de verificar se tinha alguém dentro, vivo ou morto.
         Calejado que estava pelas pelejas nas quais tomara parte em Francisco Beltrão, quando houve a tão famosa revolta dos posseiros, em 1957, se preveniu e desde a noite anterior dormia ao relento, longe da casa. Foi do seu cantinho escondido que ele e a mulher viram o fogaréu. Quando os tipos foram embora, o casal se benzeu três vezes e rezou Padre Nosso e Ave Maria.
         Nas semanas seguintes ficou amoitado. Em ocasiões assim graveto quebrado no mato era susto na certa. Vivia perambulando e se comia alguma coisa era graças à caridade dos moradores próximos. E foi um deles quem lhe disse que em São Clemente davam como certo que ele tinha morrido ou estava fugido.
         Daí foi que o tempo foi passando e o João Moreira sempre se esquivando, se escondendo mato adentro feito coruja. Assim procedeu até que numa manhã deu de cara com o tinhoso em forma de gente.
         Saindo do mato meio que desatento foi dar numa picada e ali bem na sua frente, montados num jipe da firma tagarelavam o motorista e o afamado jagunço “Maringá”. Não deu nem de fazer meia volta e já recebeu um ultimato: - Fica parado aí sujeito imprestável! Queriam saber quem era, onde morava e o que fazia por ali. Quase se borrando de medo titubeou nas respostas. Não convenceu, complicou-se de vez. Alguns minutos depois e já se encontrava amarrado numa árvore. Então teve início o conhecido ritual de tortura. Tiraram a botina e lhe bateram incontáveis vezes na planta dos pés; queimaram seu peito e pescoço com brasa de cigarro e fizeram que engolisse na marra alguns punhados de terra misturada com urina e fezes de bicho. Serviço concluído, satisfeitos com o trabalho feito, ali o deixaram com a boca tapada, para morrer.
         Mas ainda não chegara a sua vez de encarar o Criador! Desesperado, encontrou forças – e não se sabe onde – para se desvencilhar da morte certa. Liberto, correu feito louco mato adentro, não se importando com as dores que sentia nos pés, em carne viva, e nos pulsos ensangüentados.
         No dia seguinte reencontrou a mulher. Contou o caso e decidiu não mais abusar da boa sorte. Juntou sua trouxa e se bandeou lá para as bandas de Cascavel. Saiu de manhãzinha e sequer olhou para trás.
         Voltou alguns anos depois. O sonho da terra própria, pois é, ainda era um sonho. Conseguiu um espaçozinho como agregado e quando alguém se queixava da vida o velho esboçava um sorriso amarelo. Lá com seus botões até que se sentia feliz, conformado até, mesmo porque não é todo homem que consegue enganar a morte e o tinhoso em forma de gente!

José Augusto Colodel 
 Historiador
jacolodel@bol.com.br

 Fragmento I

Aos leitores o espelho estilhaçado!

           A idéia da publicação desta coletânea de crônicas frutificou de uma vontade inicial e que é inerente ao ofício do historiador, qual seja: a de divulgar para um público mais amplo e diversificado a história de Santa Helena e do Oeste do Paraná – o lugar onde vivemos. História essa muitas vezes ainda reclusa aos corredores universitários regionais, embora algumas meritórias exceções individuais e institucionais.
          Nasceu ainda de uma constatação que pode, num primeiro momento, parecer controversa para alguns mais afoitos. A de que nós, oestinos, somos portadores de certa identidade cultural, própria, sedimentada historicamente pela convivência num determinado meio geográfico e socioeconômico.
          As crônicas aqui estão, a partir desta edição. O passado visto na forma de imagens formadas por uma espécie de caleidoscópio da própria história. Dispostas como fragmentos de um espelho estilhaçado pelo passar dos anos, onde cada pedaço revela parte de um todo gigantesco que nos absorve, molda, nos faz inteligíveis. As personagens principais, como não poderiam deixar de ser, são as pessoas e seus atos, suas contribuições voluntárias ou involuntárias - atores da sua própria história.
          Que tais retalhos cumpram com o seu papel. Que sejam costurados na trama da memória. Que assim seja!
José Augusto Colodel 
 Historiador
jacolodel@bol.com.br