terça-feira, 31 de maio de 2011

QUANDO O ADVOGADO DE DEFESA
ERA O TRINTA E OITO!
Posseiros, grileiros, tocaias e jagunços no Oeste paranaense

Final de tarde e um tranqüilo e já “meio alto” Clemêncio retorna para casa. Segue a cavalo, seguindo a passos lentos a picada recém-aberta. Deixara a mulher em casa e durante boa parte do dia, estivera no armazém de secos e molhados do vilarejo. Ali, além de tomar uns bons tragos com os amigos e conhecidos, brincou no carteado, comprou uma bolsa de farinha, um volta de fumo de corda, cinco litros de querosene e um pedaço de tecido do tipo “brim Coringa” para a mulher fazer roupas para os filhos.

Para muita gente que migrou para o Oeste do Paraná,
o acesso à posse da terra foi marcado por confrontos violentos.
 
Caminhava só e apesar de meio zonzo pela boa canha estava vigilante, em sentinela, pois alguns dias antes fora ameaçado. Um estranho tinha ido a seu rancho e o avisara para deixar o pedacinho de terra que adquirira por “documento” de posse. Falara que aquela terra já tinha dono e que seria muito bom para sua saúde se ele fosse acampar em outra freguesia. Como não era tolo e levou o aviso bem a sério.
Então os dias foram seguindo, marcados pelo temor de que acontecesse com ele e sua família o que já tinha acontecido com outros tantos que conhecia. Onde morava assassinatos eram coisas corriqueiras. Todo mundo sabia quem mandava, mas ninguém falava nada. Afinal de contas, em bico fechado não entra mosca!
Clemêncio vivia com medo, um medo que teve um desfecho fatal. De repente, lá pelas tantas, já bem perto de casa, aconteceu e não deu tempo nem do cavalo relinchar, deixando-o em sobreaviso. Caiu de vereda, sem dar um pio, balaço de quarenta e quatro nas costas.
         Durante as décadas de 1950 e 1960 em muitos municípios do Oeste paranaense foram tempos de desespero e insegurança. Quase todo dia vinha a notícia de que judiaram ou mataram esse ou aquele sitiante ou posseiro. Dias de confronto, de tocaia na beira da estrada, quando a silêncio da mata era subitamente quebrado pelo estampido seco de um winchester “papo amarelo”. Quem viveu naquela época jamais esquecerá. E ainda hoje todo o acontecido fica encoberto por um espesso véu de cauteloso silêncio.

Cansados das arbitrariedades de capangas e jagunços,
posseiros pegam em armas na famosa revolta do Sudoeste.
         E isso por quê? Tudo acontecia motivado pela sagrada propriedade da terra, geralmente contestada, bititulada, grilada.
         No Oeste paranaense existiam diversas áreas em permanente litígio judicial. Frentes de ocupação que atraíam milhares de pessoas, de todos os tipos; muitas das quais sem quaisquer escrúpulos. Aventureiros, desejosos em tirar proveito dessa situação de indefinição – acobertados ou não por políticos influentes e por autoridades policiais e  governamentais.
         Situação fundiária precária onde a concessão de títulos e a emissão de contratos aconteciam sem o devido amparo legal. E na defesa de seus interesses muita gente deixou de lado o bom senso e achou mais conveniente deliberar sobre o assunto usando como advogado de defesa o “trinta e oito”. Foi então que essa “gente sem direito”, cansada e acuada, resolveu dar um basta e várias revoltas pipocaram no Oeste do Paraná: Guaraniaçu (1950), Guaíra (1956), Medianeira (1961) e Três Barras (1964). Além dessas houveram violentos conflitos em Porecatu (1951) e a mais famosa, em Francisco Beltrão (1957).   
         Para quem vinha para o Oeste do Paraná de “muda” e comprava a terra diretamente das companhias colonizadoras, geralmente corria tudo bem. Outros, com pouco dinheiro, compravam o que se chamava de “direito”, ou seja, a posse. Sabiam dos riscos e ficavam à mercê de futuros aborrecimentos. Finalmente havia aqueles dispostos a tudo - desesperados e miseráveis, muitas vezes - e que abriam a sua própria posse em locais onde havia uma brecha legal. Instalavam-se em lugares onde não tinha um proprietário decididamente documentado, um proprietário de fato.
         Mas não sejamos tão severos com a posse, achando que ela sempre foi ilegal. Não foi. Até 1850, quando foi aprovada a famosa “Lei de Terras” [1] , o único meio de se apropriar da terra no Brasil era a posse.

Francisco Beltrão, 1957.


         Mas a coisa ia além. Além da posse e seus posseiros tinha a “intrusagem”. Era uma prática comum e também foi a responsável por grande agitação fundiária. E o que era ela? Nada mais do que a ocupação ou invasão ilícita de terras devolutas ou mesmos pertencentes a proprietários ausentes. E no Oeste quase todas as antigas concessões de terras que fracassaram ou se mantiveram inexploradas foram alvo de intrusos.
         Assentando-se nessas áreas, os intrusos, que na grande maioria das vezes não tinham nenhum interesse na legalização das suas posses. Estavam interessados somente na indenização, via de regra feita em dinheiro ou pelo recebimento de novas terras.
         Pior ficava quando alguns mal-intencionados penetravam à força em determinadas posses, já alienadas, mas sem ainda terem recebido os títulos definitivos de propriedade. Para sair exigiam grandes somas em dinheiro ao mesmo tempo em que instauravam um clima de permanente tensão, com o uso freqüente de ameaças, sevícias e assassinatos. Queriam mesmo era formar “grilos”.
         Taí a tal “grilagem”, notabilizada por ser mais organizada e com o envolvimento de poderosos grupos econômicos. E esse pessoal para se apoderar de uma gleba não hesitava em falsificar escrituras, recibos, contratos de compra e venda, pareceres e plantas, dentre outros. Lidando com gente humilde e sem instrução, muitas vezes tinham êxito e conturbavam completamente o meio rural.
         Para realizar o serviço tinham capangas e contratavam jagunços. Temidos, esses pistoleiros de ofício eram afamados e tinham vários crimes nas costas. Homens extremamente úteis pelas habilidades no uso de armas, coação e outros tipos de violências físicas ou morais. Não tinham passado ou futuro, viviam o presente. Gente de confiança que não tinha nome, só apelido. Quem já não ouviu falar do “Maringá”, do “Pé Torto”, do “Miúdo”, etecétera e tal.

Basta! Na base do facão a colonada vai pra rua.
         E foi esse o panorama rural oestino durante as décadas de 1950 até meados da de 1960, quando intrusos e grileiros, com o concurso de jagunços, intranqüilizavam sitiantes e posseiros menores. Esses últimos, acossados e correndo risco de vida, se obrigavam a reagir à bala, de sorte que vários capítulos da história da ocupação de terras nesta região foram escritos com fogo e sangue. Que o digam as centenas de viúvas e órfãos, que ainda se lamentam e choram pela morte estúpida de seus entes queridos.


[1] No Brasil, a Lei de Terras (lei nº 601 de 18 de setembro de 1850) foi uma das primeiras leis brasileiras, após a independência do Brasil, a dispor sobre normas do direito agrário brasileiro.Trata-se de legislação específica para a questão fundiária. Esta lei estabelecia a compra como a única forma de acesso à terra e abolia, em definitivo, o regime de sesmarias. Junto com o código comercial, é a lei mais antiga ainda em vigor no Brasil.