Esse não é de confiança!
Intrigueiro e traiçoeiro esse tal de João Moya

Pois é, enquanto a polêmica aquarela Abopuru de Tarsila do Amaral era reverenciado e escarnado naquela tarde em Sampa, aqui na terrinha o sol era daqueles de tira pica pau do toco. Um calor de amargar, ar pesado, sufocado. Fugindo do sol escaldante e abrigadas sob uma improvisada coberta de madeira, cinco jovens mulheres proseiam enquanto sorvem tranqüilamente o seu tererê. São paraguaias que vivem no porto de Santa Helena Velha, que é o ponto terminal da obrage de Domingos Barthe. Dali é embarcada a madeira e a erva-mate que segue, via Paranazão, para a Argentina.
Animada, a prosa não passa despercebida por Juan Moya. Esse criollo, nascido em Posadas, na Argentina, trabalha a dois anos na obrage. Tem cerca de quarenta anos e carrega tatuadas no corpo visíveis marcas de uma desavença por causa de mulher. Briga de faca, daquelas de apavora qualquer um. Levou a pior e um golpe bem aplicado pelo desafeto deixou-lhe manco da perna esquerda e outro lhe gravou uma cicatriz que ia da base da orelha direita ao queixo. Agradecia mesmo assim, foi sorte não ter sido morto. Também foi sorte arrumar trabalho como o velho Barthe.
Perambulando pelo porto e redondezas, Moya não faz serviço pesado; não trabalha no escritório, na administração e nem é cozinheiro ou pistoleiro. Seu serviço é, digamos assim, bem mais delicado. Servicinho sutil.
Sonda durante alguns minutos e meio que arrastando a perna vai ao encontro da roda de tererê. As paraguaias logo percebem sua aproximação e logo tratam de mudar de assunto. Da prosa animada passa a prevalecer a partir de então o silêncio. Calejadas, elas descobriram na pele que o sujeitinho não é de confiança.
Dos mensus e suas companheiras gente como Juan Montoya recebeu a apelido de “sereno”, sendo que a alcunha não tem nenhuma relação com o seu suposto perfil psicológico ou emocional. E nada tem a ver mesmo! O apelido, comum em todas as obrages instaladas no Oeste paranaense se deve ao fato de essa gente tinha como única função a prática escancarada da intriga, da mentira, da fofoca.
Portanto, no universo exploratório das obrages, Juan Moya, assim como os outros serenos, está em seu papel. Foi contratado exatamente para isso e tem um campo fértil para disseminar o seu vasto e variado repertório de intrigas.
Enquanto os mensus vão para a sua jornada diária de trabalho, que se inicia de madrugada e vai até a boca da noite, ele fica tipo “bendito o fruto entre as mulheres”. Isso mesmo, de homem no porto de Santa Helena, fora o pessoal da administração e o capataz que está vigilante no meio do mato, só fica ele.
Entre a mulherada ele semeia a traição, colocando homem contra homem e mulher contra mulher. Com a fala mansa chega para Rosita e, cheio de falsos pudores, diz que se sente na obrigação de contar que seu companheiro está lhe traindo com a Conchita. Chama Antonio em separado e no pé do ouvido lhe confessa como amigo sincero que sua tão querida Maria está lhe corneando com o Chico. E assim vai, pedindo para um ficar de olho no outro, para que aquela tome cuidado com essa. Semeia intriga e colhe desconfiança e desunião. E isso lhe basta.
Olhando com os olhos do presente fica-se a imaginar que tipo de gente era essa que nem o Juan Moya e por que fazia tal coisa? É elementar intrigado leitor, agindo como agia ele conseguia em última instância que os mensus não se unissem de jeito nenhum. Imagine só se toda aquela peonada sofrida e miserável juntasse forças e investisse contra os obrageros e colocasse por terra a rotina diária de quase servidão a qual estavam impingidos? Num piscar de olhos tomavam conta de tudo, matavam os capatazes, incendiavam, destruíam e caíam no mundo.
Daí se vê que o sereno era uma figura premeditadamente construída, relevante, quase indispensável, nessa arena de dominantes e dominados. Sua tarefa era a manutenção do status quo vigente. Ao fomentar a discórdia controlada dava vasão às ordens de seus patrões, pois esses não tinham o menor interesse em meter a mão no bolso visando a contratação de mais seguranças. Tinha lógica, já que qualquer obrage somente era viável se os seus lucros fossem maximizados ao extremo. Sendo assim, o desembolso com mais homens era tido como supérfluo.