quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Num tempo em que a
Ponte Queimada ainda era coberta
Até ser incendiada pela Coluna Prestes um abrigo seguro aos viajantes

       Fim de tarde frio, de tempo carregado e céu encoberto, lá por meados de junho de 1909. Pela picada sem cuidados, serpenteando a exuberante mata nativa, fechada e ainda praticamente inatacada, sacoleja um desajeitado carroção repleto de erva-mate. Vem puxado por uma junta de bois e tem na boleia dois mensus paraguaios - guaranis modernos que trabalham como peões numa das grandes obrages espalhadas pela Região Oeste. Mão de obra quase servil, tratada cruelmente, na base do winchester, do arreio e do chicote! 

Estado atual das raínas da Ponte Queimada
         Os moços haviam saído faziam dois dias da Central Barth e tinham destino certo: o porto fluvial de Santa Helena, na margem do rio Paraná e de propriedade de Domingos Barth. Dali a preciosa carga seria embarcada num dos vapores que semanalmente seguiam para o Corrientes ou Missiones, em território argentino.
       Vale dizer que por essa época e por muitos anos ainda a navegação pelo Paranazão era totalmente controlada pelos obrageros. Embarcação com bandeira brasileira por ali não existia! Já a Central Barth, uma espécie de depósito geral embrenhado em meio à floresta subtropical, era o local onde vários galpões de madeira armazenavam mantimentos e principalmente a erva cancheada, retirada nas redondezas. Ali estava a tão famosa central – ponto de apoio muito cobiçado pelos viajantes - localizada em terrenos que quase um século depois pertenceriam ao futuro município de Cascavel.
       Tanto o porto de Santa Helena e a Central, como o nome mesmo diz, também pertenciam ao obragero argentino Domingos Barthe. Seu único interesse, como o era o de todos os obrageros, era o lucro fácil obtido através da exploração das aparentemente inesgotáveis reservas de madeira de lei e de erva-mate do Oeste paranaense. Para tanto, desde o início do século XX, ele havia adquirido junto ao Governo do Estado do Paraná, a preço de chinelo, cerca de 60 mil hectares de terras. Gigante fundiário esse tal de Barth, com seu império se estendendo desde Guarapuava até o rio Paraná!
       Voltando àquela tarde, os mensus prosseguem em sua viagem rotineira, impotentes e humilhados pelos mecanismos de exploração e cobiça dos quais eram as maiores vítimas. Internados na mata úmida guiam o carroção em seu passo lento, cigarro de palha pendurado no canto da boca. Ainda estão distantes cerca de dois quilômetros do rio São Francisco Falso quando se veem debaixo de uma garoa enjoada, daquelas de encharcar as roupas e gelar os ossos.
       Chuvinha fina, acompanhada de um vento cortante que vinham em má hora. Chuva inconveniente, mas os paraguaios levam a sorte a seu lado, pois para atravessar o São Francisco fora construída a mando de Domingos Barthe uma imponente ponte de madeira, que ficaria conhecida para a história como “Ponte Queimada”. Ponte antiga, datada de 1900. Sólida, com pilares de pedra e bom madeirame, era o lugar ideal para passarem a noite, se protegerem da chuva, das cobras e das pintadas que perambulavam pela região.
       O manto negro celeste já reinava quando dão com a ponte – imagem silenciosa e tão bem vinda. Ali está ela, estranhamente iluminada. Encostam o carroção, desencilham os bois, dão-lhes de beber e comer e vão ao encontro da claridade mortiça. Adentram cautelosos e vislumbram dois outros paraguaios, proseando em guarani, chimarreando e fumando sob a luz de uma lamparina à base de graxa de capivara. Sossegam e relaxam os nervos. Na conversa entabulada descobrem que os outros fazem o caminho de volta, saindo de Santa Helena rumo ao encontro da ilex paraguaiensis, nosso ouro verde. Naquela noite não dormirão ao relento, mesmo porque a ponte é coberta em toda a sua extensão por um telhado, em duas águas, feito com tabuinhas lascadas.

Memorial homegeia a passagem
 da Coluna Prestes por Santa Helena


       Anos mais tarde o tal telhado, meio apodrecido e judiado pelos ventos, foi retirado e não mais colocado, para o desencanto dos mensus e dos raríssimos viajantes que percorriam a região e que careciam de abrigo.
       Quanto à ponte, a original foi deliberadamente queimada em 1924 pelas tropas da Coluna Prestes, derrotadas na batalha de Catanduvas e que se retiravam apressadamente do Oeste do Paraná, tendo em seus calcanhares os soldados do General Rondon. Cinco anos mais tarde, em 1929, a ponte foi reconstruída pela Companhia Espéria, dando tráfego regular até 1933, quando uma enchente a destruiu. Ela ficou no esquecimento até o ano de 1957, quando foi reconstruída pelo governo paranaense. Em 1970 passou por reformas que visavam torná-la mais segura. Para tanto, seus pilares foram levantados em 80 centímetros. Meses após a reforma desabou sob o excesso de carga e má construção. Sofreu então a sua última restauração, levada a cabo pelo Departamento de Rodagem. Finalmente, em 1982, com a criação do reservatório da Itaipu Binacional foi desmantelada e definitivamente abandonada. Nas proximidades foi erigida uma nova ponte, de concreto, que desde então vem sendo utilizada.
       Vem daí que da velha ponte, coberta com tabuinhas, abrigo histórico e seguro para os mensus e viajantes que palmilhavam o Oeste paranaense, sobreviveram somente as ruínas solenes de seus vetustos pilares de pedra.
José Augusto Colodel
Historiador