sexta-feira, 14 de dezembro de 2012


O último Natal

Pai Nosso, que estais no Céu 
Santificado seja o Vosso Nome. 

         Madrugadinha abafada de 28 de dezembro de 1962. Fazendo um baita esforço o velho gaúcho lentamente se acomodou  ao lado do motorista da camionete e, cabisbaixo, relutou olhar para os lados. Não tinha coragem.
       Coragem? Coragem era um predicado que nunca antes tinha lhe faltado. Entretanto, naquele momento sabia que deixava para trás os retalhos de uma vida marcada pelo trabalho pesado, lutas, dissabores, realizações e sabe lá Deus mais o quê.
       Mas era tão difícil não olhar que não aguentou  Instantes depois, como a desafiar a si mesmo, pousou os olhos na velha casa de madeira; seu castelo, o baluarte de um sonho iniciado no “osso do peito” décadas atrás.
       Da construção original, lembrou, somente havia trocado o telhado, inicialmente feito com tabuinhas lascadas. Que trabalheira deu! Na varanda viu com tristeza a mulher, a velha e tão amada companheira de todas as horas. Contemplou à distância os filhos e as noras se despedirem da parentada, da vizinhança e do compadre Vitorino, o novo dono do lugar. Estava de mudança, a primeira e a última que faria na vida. Estava de muda, de “mala e cuia”, para o Oeste do Paraná.
       O que mais lhe doía era o fato de não ter tido condições financeiras para segurar os filhos junto a si. O dinheiro sempre fora pouco, contado. O pedaço de terra, comprado há mais de trinta anos - cerca de cinco alqueires - não dava mais para o sustento da agora numerosa família. Eram no total sete filhos, sendo que os dois mais velhos tinham casado e, sem condições, se obrigaram a trazer as mulheres para debaixo do teto dos pais, como era costume. Bem sabia que não tinha alternativa alguma, pois a terra, além de “dobrada”, era pouca para tantas bocas.
       Pensava, remoía e antevia um futuro incerto para todos. Andava meio desnorteado. E assim foi até que um dos filhos trouxe a notícia da existência de um novo loteamento que estava sendo aberto no Oeste paranaense, num lugar chamado Santa Helena. Diziam ser terra boa, plana, escriturada e, o que era mais importante, barata.
       De início recusou a idéia. Deixar o Rio Grande, nunca! Ali nasceu, foi guri de estilingue e bornal,  frequentou o primário e ali se casou e criou os filhos. Imagine só ter que abandonar o rincão! Nem morto!
       Mas, sabe como é que é, a gente faz um plano, Deus faz outro e assim vai. A coisa foi apertando e o velho cerne, acuado, não teve outro jeito. Obrigava-se a ceder às evidências. Falou com a mulher, ponderaram e acabou concordando – e o coração pisado, pisado! Três semanas se passaram e o velho embarcou em caravana para Santa Helena. Viagem longa, mas absolutamente necessária. Queria conhecer de perto o local onde iria abrigar sua família e encerrar os seus dias. Pouco tempo depois estava de volta, com os papéis assinados e um sorriso amarelo na cara.
       Para a família reunida relatou que lá seria difícil num primeiro momento; tinham que começar do zero. A terra era fértil, de primeira, coberta de mato e com boas aguadas. De comodidade faltava quase tudo: de estrada a hospital! Ia ser duro, mas dava para encarar. Naquela mesma tarde falaria com o compadre Vitorino e fecharia negócio, conforme o combinado. E o combinado nunca é caro.
       Deus bem sabia que não era homem dado a queixumes, aprendera desde muito cedo a se virar com nada ou quase nada. Nunca lhe faltou coragem para enfrentar o serviço, por mais pesado que fosse. E não era só ele; a mulher também não era de se entregar por qualquer bobagem. Dos filhos, nem se fale, não tinha reparo, mesmo porque foram criados na lida, pelo exemplo e educação emanada dos pais. Assim sendo, viesse o que viesse eles dariam conta!
       Para a tradicional comilança de Natal que se aproximava matou dois porcos bem criados, fez embutidos, fritou a carne e colocou-a em latas cheias de banha. Essas iam para o Paraná juntamente com o cachorro paqueiro, ferramentas, alguma mobília essencial, roupas, utensílios de cozinha e objetos pessoais. Caso pudesse levar também o ar, as nuvens, os morros, o parreiral e o cheiro da terra, ele levaria!
       O último domingo antes da viagem foi reservado para um churrasco de patrão. Convidou parentes, amigos e vizinhos.  Era domingo de Natal, o último pisando naquele chão batido do quintal. O dia foi passando com ele ouvindo os acordes e lamentos de uma gaita bem tocada. Nem o bom vinho caseiro amenizava a dor e saudades antecipadas. No final da tarde, meio zonzo, cantou com sua voz grave canções que vinham desde a infância. Cantoria dos bons tempos de coral da antiga igreja entre os montes. Chorou, abraçado aos filhos e à velha companheira. Mas te pergunto: quem não choraria?
       Mesmo segurando o tempo com as duas mãos chegou a fatídica quarta-feira e com ela a hora da partida. Era escuro ainda quando acendeu pela última vez o tão usado fogão a lenha. Esquentou a água e preparou o chimarrão. De chaleira e cuia na mão foi para fora e sentou-se na escada. Fitava tudo com extremo cuidado, como a querer guardar cada detalhe bem lá no fundo da alma. Chorou novamente. Minutos depois estavam todos de pé, silenciosos em seus últimos afazeres.
       Um derradeiro adeus e puseram o pé na estrada. A poeira levantada pela camionete e pelo caminhão carregado com as tranqueiras até que serviam de consolo ao impedir a visão de um lar que ia ficando no passado. Olhando fixamente para a estrada à sua frente o velho gaúcho fez um juramento em silêncio: nunca, nunca mais voltaria! Doía demais! Meu Deus como doía!
       Passou aquele fim de ano em Santa Helena, em casa de estranhos. Fincou novas raízes, aprendeu a gostar do lugar e por aqui se aquietou.
       Nos anos seguintes celebrou outros tantos natais, mas na lembrança voltava ao velho quintal em Tucunduva. Revivia 1960 e o último Natal ali passado. E todas as vezes se pegava com os olhos cheios d’água. 
       Viúvo viveu de teimoso até que o Patrão do Céu veio buscá-lo em setembro de 2001. Tinha oitenta e nove anos bem vividos. O velho cerne levou à risca, amargurado até o último, a promessa que havia feito ao deixar o velho rancho em Tucunduva. Nunca mais voltou! Quem sabe agora, ao lado do Patrão Celestial,  pudesse reencontrar o ar, as nuvens, os morros, o parreiral e o cheiro da velha terra. Quem sabe... Pai Nosso Que estais no Céu...

José Augusto Colodel
Historiador
Acesse também o Blog do Colodel:
http://jaccolodel.blogspot.com/

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012


Uma história 
de bandeirantes e de escravos
José Augusto Colodel
Parte  final

      No Brasil Colônia, sob o domínio lusitano, a carência de mão de obra se fazia sentir nas grandes propriedades rurais paulistas. Aqui quem trabalhava de sol a sol eram os escravos provenientes de mama África, mas a sua remessa não era suficiente para as demandas locais, embora o tráfico estivesse funcionando regularmente. Além de chegarem ao Brasil em números insuficientes iam se tornando cada vez mais caros em função da famosa lei da oferta e da procura. 
Moenda  em fazenda paulista do século XVII.
        Sendo assim, o que fazer? Solução encontrada: escravizar os indígenas que podiam ser aprisionados em território inicialmente controlado pela Coroa portuguesa. E foi o que fizeram. Mas também os escravos indígenas logo rarearam e a falta de braços para a lavoura começou a pesar cada vez mais. O negócio foi passar por cima da linha imaginária conhecida como Meridiano de Tordesilhas e lançar mão aos milhares de índios que habitavam toda a porção ocidental do atual território do brasileiro – com o Oeste paranaense incluído, é óbvio.
      Como a necessidade é a mãe de todas as atitudes, já nos primeiros anos do século XVII bandeirantes [1] oriundos de terras de São Vicente (São Paulo) internaram-se nos domínios espanhóis com o firme propósito de aprisionar os indígenas que encontrassem para depois vendê-los aos fazendeiros paulistas. No mercado de escravos o preço obtido por cada índio capturado era ótimo e compensava todos os riscos enfrentados por essas expedições de pilhagem.
      A notícia da presença de aventureiros portugueses na região da Província do Guairá caiu como um raio entre as comunidades espanholas. Mais temerosos ainda ficaram os missionários da Companhia de Jesus, responsáveis pelas reduções. As queixas espanholas desaprovando essas invasões territoriais eram cada vez mais veementes. O Governo da Capitania de São Paulo respondia que também as desaprovava mas que por falta de recursos materiais e humanos não podia fazer muita coisa. Na verdade, as autoridades paulistas davam total apoio às expedições bandeirantes. Os interesses comerciais e políticos falavam bem mais alto do que a obediência de meras formalidades diplomáticas expostas num tratado que tinha tudo para ser descumprido.
     E os portugueses em vez de refrear seu ímpeto pela captura de mão de obra escrava aumentam-no cada vez mais. Como se não bastasse escravizar os indígenas que viviam espalhados pelas tribos no Guairá também começaram a atacar de modo sistemático e impiedoso as reduções jesuíticas estabelecidas naquela região. Saliente-se que o ataque a essas reduções revestia-se de uma enorme vantagem aos portugueses na medida em que os indígenas ali aldeados já haviam sido completamente domesticados pelos jesuítas, constituindo-se numa farta reserva de mão de obra previamente disciplinada.

Os jesuítas, atacados violentamente pelas expedições portuguesas e não contando com o apoio integral dos espanhóis que ali habitavam, viram suas Reduções serem devastadas num ritmo incrivelmente veloz. Comandadas pelo bandeirante Antonio Raposo Tavares, as expedições portuguesas lograram destruir todas as Reduções do Guairá no espaço de tempo de apenas quatro anos! De 1629 a 1632(COLODEL, 1988, p. 33).

       E foi a ferro e sangue! Dos quarenta mil índios aldeados na Província do Guairá, restavam somente doze mil em 1631!  
     Diante das investidas portuguesas, as reduções jamais foram restauradas e os indígenas que delas sobreviveram fugiram ou foram transferidos pelos jesuítas cada vez mais para o interior. Contingentes  atravessaram o rio Iguaçu e chegaram ao território paraguaio onde fundaram uma comunidade de nome Vila Rica.
     Durante o êxodo dos jesuítas pelos rios Paranapanema e Paraná até a região do Paraná-Uruguai, constantes também foram os ataques perpetrados pelos próprios espanhóis que se aproveitaram da oportunidade para arrebanhar alguns índios e reduzi-los à escravidão. Dos aldeamentos existentes somente os de Santo Inácio Mini e Nossa Senhora de Loreto conseguiram escapar ilesos dessa tragédia, por se situarem na região mais setentrional das terras paranaenses.
Acampamento bandeirante
     A violência se espalhou pois as investidas portuguesas não se resumiram aos ataques às reduções jesuíticas. Povoações espanholas também não conseguiram escapar à sua fúria. Tanto que Vila Rica e Ciudad Real tiveram que ser abandonadas em 1632 após terem sido assediadas pelas expedições militares paulistas.
    Essa rotina de saques e destruição somente chegou a termo lá por volta de 1641 quando os remanescentes jesuítas e indígenas organizam-se e derrotam a Bandeira de Jerônimo Pedroso de Barros e Manuel Pires, junto ao rio Mbororé. Após mais de meio século os paulistas conheceram o sabor amargo da derrota. Porém, essa vitória isolada em nada contribuiu para reverter uma situação que se impunha como nova.
     O aparecimento inesperado das bandeiras paulistas na porção ocidental do território paranaense teve como contrapartida o surgimento de novos delineamentos políticos e econômicos em toda essa imensa região, até então controlada exclusivamente pelos interesses espanhóis. Agindo de maneira tempestuosa e destruidora as Bandeiras serviram como fator decisivo para a desarticulação e rompimento da expansão espanhola rumo ao Oceano Atlântico – expansão que tinha como ponta-de-lança as reduções jesuíticas. Sendo obrigados a abandonar toda a região compreendida pela margem esquerda do rio Paraná os espanhóis deixaram o caminho livre para que se estabelecesse o uti possidetis português naquelas paragens ainda diplomaticamente pertencentes ao Reino de Espanha.
      A presença portuguesa por toda essa região foi se impondo com os anos. O Meridiano de Tordesilhas há muito ultrapassado e foi perdendo sua magnitude delimitatória. Finalmente, em 1750 foi celebrado o Tratado de Madri, o qual confirmou diplomaticamente as novas fronteiras entre os domínios espanhóis e portugueses. O Oeste paranaense foi ratificado como português, sendo o rio Paraná a fronteira natural com as possessões espanholas.
      Com a destruição das reduções jesuíticas e demais povoações espanholas no Guairá, a margem esquerda do Paraná viu-se num estado de quase completo abandono. Afinal de contas os portugueses tinham interesses nos indígenas que podiam escravizar e esses abandonaram aquela área. Assim, deserta e sem atrativos econômicos ou políticos ficou esquecida por mais de uma centena de anos.
       E assim foi até a chegada do século XIX.  Porém, agora não seriam mais as pedras e metais preciosos ou o preamento de indígenas a serem escravizados os fatores que atrairiam novos interesses para o Oeste paranaense. Novos produtos estavam em destaque comercial. A erva-mate e a madeira eram o binômio econômico que despertava a cobiça de novos aventureiros.
Ataque bandeirante
      E seriam novamente os espanhóis e seus descendentes os responsáveis pelo processo de exploração econômica dessas novas riquezas vegetais. Só que o retorno desses aventureiros ao Oeste paranaense se daria de maneira muito mais organizada e durante um vasto espaço temporal exerceriam completo controle político e econômico em todas as esferas de interesses representativas. Para tanto, muitas vezes contariam com a impotência e incompetência administrativas das autoridades governamentais brasileiras, seja pelo abandono ou pela adoção de uma política de colonização equivocada.
         Seja como for, a presença estrangeira no Oeste paranaense teria como conseqüência a estruturação de um universo social típico, com formas de exploração e dominação específicas, alicerçadas no mandonismo local e tendo como pólo irradiador verdadeiros impérios agrários – as obrages!


[1] Responsável pela incorporação de cerca de dois terços do atual território nacional à Coroa portuguesa, o bandeirantismo pode ser dividido, em linhas gerais, em duas fases: até meados do século XVII, as expedições bandeirantes dirigiram-se ao Sul à cata de indígenas  para serem escravizados; daí para frente seu interesse maior foi a busca de metais e pedras preciosas.

REFERÊNCIAS

COLODEL, José Augusto.  Obrages & companhias colonizadoras: Santa Helena na história do Oeste paranaense até 1960.  Cascavel : Assoeste, 1988.