terça-feira, 19 de outubro de 2010

Caminhar pra quê? Viajar de vapor pelo Paranazão era bem melhor!

            Porto Mendes, fevereiro de 1933. Início de tarde quente e ensolarado para os viajantes que esperam ansiosos junto à íngreme barranca. Enquanto aguardam a chegada do vapor, contemplam e se deliciam com a paisagem que se descortina à sua frente. Olhos que se enchem com um verde a perder de vista. Verdes de todas as tonalidades, tendo como pano de fundo um céu que não tem como ser mais azul. Sentem-se insignificantes, principalmente quando admiram as águas do rio Paraná. Preguiçosamente voltam seus olhos para baixo e se assustam com a altura da barranca. São mais de cem metros, com certeza. Uma queda dali certamente seria fatal ao descuidado.

O vapor Santo Antonio atracado no Porto de Areia
(Santa Helena), pronto para seguir viagem para Foz do Iguaçu.

            Para eles a viagem teve início em Guaíra, pela estrada de ferro de propriedade da Companhia Mate Laranjeira, uma imensa obrage* que explora a erva-mate em território mato-grossense e paranaense desde 1902. A estrada de ferro, com sessenta quilômetros de extensão, fora inaugurada em 1917. Era caminho particular e por ele, até 1929, só viajava quem fosse autorizado pela empresa. Ali, em Porto Mendes, cercados por enxames de mosquitos, não vêem a hora de embarcar no barco que os levará até a cidade de Foz do Iguaçu.
            Em terras paranaenses, desde o final do século XIX, a navegação pelo rio Paraná se estende por uns cento e vinte quilômetros, de Porto Mendes a Foz do Iguaçu. Navegação essa controlada quase toda por empresários argentinos e que somente no trecho compreendido entre Guaíra e Porto Mendes é impraticável em função das pedras e corredeiras. Daí a estrada de ferro.
            Do lado brasileiro os principais portos são o de Bela Vista, Sol de Maio, Santa Helena, Jejuy, Porto Felicidade, Britânia, Rio Branco, São Francisco, Porto Artaza e Porto Mendes - e todos eles pertencem a obrageros – também argentinos!
Vapor argentino Iberá, juntamente com o Cruz de Malta, marcou época no rio Paraná.
            De repente um penacho fumaça é avistado ao longe. É o vapor Cruz de Malta vencendo lentamente o Paranazão, enfrentando com dificuldades a correnteza que lhe maltrata a proa. Cerca de vinte minutos se passam até que ele manobre e deixe encostar-se ao atracadouro ao pé da barranca. Lá em cima os passageiros ainda têm que esperar que se concluam as operações de carga e descarga de mercadorias, feitas por meio de zorras. Estas nada mais são do que de duas vagonetes que correm por duas fileiras paralelas de trilhos. Enquanto uma desce a outra sobe em sistema de contrapeso. É fato que as vagonetes atingem grandes velocidades na descida e alguns decidem se arriscar barranca abaixo, agarrando-se a pedras e arbustos.

O sistema de zorra em Porto Mendes

            O Cruz de Malta, a exemplo dos demais vapores que viajam pelo rio Paraná, traz da Argentina produtos que não existem na região. Seus porões estão repletos de roupas, ferramentas, sal, açúcar, farinha, azeite, tecidos, sapatos, louças, bebidas, gasolina, querosene, artigos de couro, livros e revistas. Transporta passageiros eventuais, mas o que realmente interessa é a erva-mate, explorada de maneira predatória e levada para Corrientes e Missiones, na Argentina. É impulsionado por uma caldeira a vapor e por um sistema de pás localizadas na popa, bem ao estilo dos vapores do rio Mississipi.
            Dentro do barco os passageiros são divididos em três classes, de acordo com o dinheiro que carregam na guaiaca. Os da terceira ficam alojados na parte inferior, sendo que a sala de refeições serve como dormitório, à base de beliches presos às paredes. Os da segunda contam com mais regalias, tais como camarotes individuais, com beliches, mesas e cadeiras para as refeições. Alguns se acomodam na primeira classe, e dispõe de um confortável camarote. Além do que tem ao seu dispor iguarias e bebidas de excelente qualidade. O refeitório é dotado de ventiladores e as refeições serão acompanhadas por música ao vivo ou por gramofones.

Vapor Cruzeiro, construído em Santa Helena Velha, 
sendo transportado para o rio Paraná
           Alguns passageiros recebem permissão para ir até a ponte e dali acompanhar a perícia com que o piloto manobra o grande vapor, colocando-o no meio do rio. Na tripulação, além do piloto há o comandante, comissário de bordo, marinheiros, cozinheiros e garçons, quase todos – só para variar -de origem argentina. De Porto Mendes a Foz do Iguaçu a viagem leva aproximadamente quatro horas. É uma bela tarde, o leito do Paraná está tranqüilo e o Cruz de Malta chega a Foz apitando, escandaloso, quase ao por do sol. Ali passará a noite e na manhã seguinte seguirá com destino a Posadas, na Argentina.
            A curta viagem terminou e ao desembarcarem – mais essa! - constatam que o atracadouro não passa de um banco de areia amarela, sem quaisquer comodidades. Foz tem três ou quatro ruas. E olha lá! Juntam suas bagagens de mão e inutilmente esperam por qualquer condução até a cidade. Resolvem cobrir a pé os mil metros que os separam do hotel. No caminho praguejam mil vezes pela lama e os atoleiros que têm que superar. Enfim chegam ao Hotel Brasil, deixando para trás o Cruz de Malta e o rio Paraná, com seus vapores argentinos e paraguaios. Anos mais tarde recordarão da viagem. Contarão aos filhos e netos fatos sobre essa navegação pioneira que, do final do século XIX até o início da década de 1940, reinou inconteste como a mais importante via de comunicação e integração no universo socioeconômico e cultural do Oeste paranaense.
José Augusto Colodel 
 Historiador
jacolodel@bol.com.br

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* A obrage caracterizava-se como uma propriedade e/ou exploração típica das regiões cobertas pela mata subtropical, em território argentino e paraguaio. Sua existência baseava-se na coleta intensiva e predatória do binômio mate-madeira. Esse sistema, a partir do século XIX, ultrapassaria as fronteiras desses países e penetraria no extremo-oeste paranaense, na época praticamente despovoado. Aqui, as obrages estabelecidas exerceriam suas atividades até a década de 1920, quando a passagem da Coluna Prestes e a Revolução de 1930 determinam sua total desarticulação.