terça-feira, 19 de fevereiro de 2013


História e biografia, biografia e história.

José Augusto Colodel


A narrativa biográfica supõe uma modalidade de escrita da História profundamente   imbricada   nas   subjetividades,  nos   afetos,   nos   modos   dever, perceber e sentir o outro. Talvez este seja o grande desafio do trabalho biográfico: ao falar do seu personagem, o biógrafo, de certa forma, fala de si mesmo, projeta algo de suas emoções, de seus próprios valores e necessidades. (Borges, 2009, p. 232)

           A discussão que se abriu sobre o tema é razoavelmente recente, ampla e vai ampliar-se ainda mais. Não faz muito que a chamada biografia histórica ganhou um maior espaço e conceito entre os cientistas sociais, notadamente os historiadores, embora ainda coexistam inúmeras controvérsias quanto ao alcance de sua legitimidade e aplicação. Mas nem sempre foi assim.
          No mundo antigo a biografia dos grandes personagens confundia-se com a narrativa e a narrativa confundia-se com a história. Quem não se lembra da Ilíada e da Odisseia? De Ulisses, Helena, Páris, etecétera? Heróis num plano maior, protagonistas. Seus feitos chegaram até nós, pois a retórica assumiu para Homero, Tucídetes e Heródoto, dentre outros, papel fundamental à medida que transformou homens em semideuses através do belo e bom discurso escrito. O importante era o efeito literário, a linguagem. E a história? A história, com todas as suas contradições e complexidades, acessória enquanto tal, deveria se encaixar às ações individuais. Submissão do coletivo ao individual. O individual tornando-se imortal.

No século XIX, as biografias tiveram importante papel na construção da ideia de “nação”, imortalizando heróis e monarcas, ajudando a consolidar um patrimônio de símbolos feito de ancestrais fundadores, monumentos, lugares de memória, tradições populares etc. Esta concepção foi retomada pela  corrente positivista. A biografia assimilou-se à exaltação das glórias nacionais, no cenário de uma história que embelezava o acontecimento, o fato. Foi a época de ouro de historiadores renomados como Taine, Fustel de Coulanges e Michelet, autor de excepcionais retratos de Danton a Napoleão.(Del Priori, 2001).

                   O pensamento positivista resgatou a importância das biografias para compreensão da História. Contudo, grande parte dos historiadores contrários a essa doutrina, cujo foco de interesse prioritário estava nos grandes homens, nos grandes acontecimentos históricos e grandes batalhas, predominantes nos textos de história no final século XIX e início do século XX, contribuiu para a sua negação nas décadas que se seguiram.

Com o advento da “Nova História” dos Annales na França e da historiografia marxista passou a reinar quase que inconteste a chamada história das estruturas. A longa duração passou a explicar as ações humanas segundo determinações que escapavam aos indivíduos per si. Impôs-se então que somente a longa duração seria capaz de recuperar os grandes movimentos das sociedades em suas regularidades e permanências, escapando à superficialidade dos fatos. Nessa perspectiva a análise das estruturas econômicas e sociais firmaram-se como o eixo de observação predileto dos historiadores, preocupados em desvendar o mundo histórico em sua processualidade. A História Política, rica em acontecimentos e apresentada por meio de uma narrativa linear, deveria ser sepultada de uma vez por todas.

          O reinado da história estrutural permaneceu inatacado, inconteste até a década de 1960, quando começaram a despontar alguns estudos que procuravam reinserir o indivíduo na trama da história, mas de maneira diferente do que acontecia com a historiografia produzida no século XIX. Uma mudança de foco ou como nos ensina Le Goff (1990), a adoção de uma biografia histórica nova que, sem reduzir as grandes personagens a uma explicação sociológica, esclarece-as pelas estruturas e estuda-as através de suas funções e papéis.

          Entretanto, o historiador que deseja penetrar na seara da biografia e história, história e biografia, deve ter na devida conta que jamais deverá deixar de lado os princípios básicos e norteadores da pesquisa histórica sob pena de produzir uma história ficcional. E isso acontece principalmente quando ele se depara com lacunas documentais ou perguntas que não encontram explicação imediata.

O campo da escrita biográfica é certamente um palco privilegiado de experimentação para o historiador, que pode avaliar o caráter ambivalente da epistemologia do seu ofício, inevitavelmente tenso entre seu pólo científico e seu pólo ficcional. Desta forma, a biografia provoca um polêmico questionamento à absoluta distinção entre um gênero verdadeiramente literário e uma dimensão puramente científica, suscitando a mescla, o hibridismo, e expressa, assim, tanto as tensões como as convivências existentes entre literatura e Ciências Humanas (Avelar, 2010, p.161).