terça-feira, 22 de março de 2011

Em leito de morte!

Navega a maromba, com assoalho de madeira de lei!

 

            Vista das belas praias do Nordeste brasileiro ela se mostra encantadora. Ei-la ali contrastando com o azul do céu, serena imagem de uma vela triangular ao sabor dos ventos. Vela de pano grosso, branco, encimado uma tosca armação de madeira. Eis a jangada, retrato da cultura regional e tema frequente para inesquecíveis composições do cancioneiro nacional, pelo menos até a década de 1960. Que o diga o saudoso mestre Dorival Caymi!

            Mas quem pensa que a jangada é privilégio só de cearense ou alagoano está redondamente enganado. Acredite, existiam jangadas no rio Paraná. Impressionantes mas elas nada tinham de encantadoras. Na Região Oeste eram conhecidas como balsas ou marombas e marcaram época quando o rio Paraná e o Oeste paranaense estavam à mercê dos interesses predatórios dos obrageros.

            As marombas reinaram até meados do século XX, quando imensas quantidades de madeira de lei eram diariamente surrupiadas da floresta oestina e levadas até as barrancas do Paranazão.


Maromba montada, pronta para seguir viagem.

Para retirar a madeira em meio à mata se fazia uso de um meio de transporte bastante peculiar e atualmente praticamente desconhecido: as alçapremas. Essas engenhocas consistiam basicamente num veículo composto de um eixo de madeira em cujas extremidades eram fixadas duas rodas de tamanho descomunal, cuja altura podia superar os dois metros. Era ali, embaixo desse eixo, que eram amarradas as toras. Conforme o tamanho da tora, cada alçaprema podia deslocar no máximo três toras puxadas por uma, duas ou até três parelhas de animais de carga.

            Chegando à barranca do grande rio as toras eram depositadas. Grandes pilhas de bojudos e vetustos toros à espera de embarque. Expostos ao tempo podiam ser encontrados exemplares magníficos de cedro, peroba, canjerana, caneleira, caviúna, sassafrás e marfim. Quando na margem estavam ajuntadas algumas centenas de toras era a hora de começar a construção da dita maromba.

Maromba em construção.

 

            O local apropriado, batizado de tombada, geralmente era uma enseada. A primeira coisa a fazer era empurrar as toras barranca abaixo, por meio de alavancas improvisadas.

            A construção de uma maromba, conhecida por embalse era trabalho duro, difícil e perigoso. Não era tarefa para moleque. Poderia demorar semanas. No embalse cada tora era previamente selecionada e tinha um lugar certo, de acordo com a sua espécie, peso, comprimento e grossura. Dia após dia, aos poucos, ia se formando uma estiva ou assoalho gradeado, dividido em áreas que se emendavam umas às outras, tanto no comprimento como na largura. Para que as toras permanecessem unidas os balseiros faziam uso de grandes travessões de madeiras atados por arames ou por um tipo especial de cipó muito resistente.

Um imenso piso gradeado.

   Enquanto se montava a maromba, que podia levar até duas mil toras, ela era presa à margem por cabos de segurança. Depois de pronta era solta e descia o Paraná ao sabor da correnteza e da habilidade dos seus balseiros; geralmente cinco ou seis peões tarimbados.

     Trabalho imprescindível e traiçoeiro era o do palanqueiro. Munido de um varejão, a palanca, utilizava-o como um tipo de remo. O varejão não era empregado diretamente na água e sim para mover determinados troncos da maromba, que eram mantidos soltos de propósito. Com os ombros o palanqueiro batia o tronco solto nos amarrados, diminuindo assim a agitação das águas e mantendo a maromba estável e na direção certa.

            No assoalho da maromba era levantado um pequeno e rústico “rancho”, que servia de abrigo para os balseiros, bagagem e mantimentos. Para dar sustento aos balseiros a comida tinha que ser forte, à base de feijão, arroz, banha, farinha, charque e a indispensável erva-mate.

O árduo trabalho da construção

  Por segurança não se viajava de noite. Ao entardecer a maromba era encostada na margem. E olha que era viagem complicada, cheia de perigos mortais. Havia o cruzo, momento de extremo perigo quando a maromba se encontrava com um vapor. O negócio era abrigar a maromba o mais rapidamente possível, até que o navio passasse e deixasse para trás as ondas que se formavam e que podiam desmontá-la, matando seus ocupantes. Pior ainda era o vento sul, que criava grandes ondas, tornando quase impossível a sua condução. Quando uma delas era apanhada pelo vento sul, via de regra era estraçalhada pelas correntezas, que então se multiplicavam. Era morte quase certa para seus tripulantes. E muitos deles pagaram com a vida, e isto é um fato.

            Depois de semanas de muitas peripécias a maromba chegava ao seu destino em terras argentinas; aportando nas serrarias de Posadas, Ibicuy, Encarnación ou Corrientes. Uma vez desmontada virava jangada morta e os balseiros recebiam finalmente seus parcos salários. Daí era só festa! Torravam o rico dinheirinho nos bares e prostíbulos. Quando estavam com os bolsos vazios voltavam como lavadores de convés ou marinheiros não qualificados nos vapores que subiam o Paraná. Viajavam em troca da passagem e da comida! Meses depois estavam de volta ... mãos e ombros calejados.

José Augusto Colodel - historiador


quarta-feira, 2 de março de 2011

Oeste sombrio: terra de Allica, terra de Santa Cruz.
Quando o chicote e o winchester falavam mais alto!
        
               Que se diga que quando ele morreu, foi um alívio. A notícia era sensacional e, embora todos os contratempos daquela época, a boa nova se espalhou feito fogo na quiçaça. Por todo o Oeste paranaense só se ouvia que, alguns dias antes, deram cabo no cruel Santa Cruz, tiraram o couro do “amardiçoado”. Muita, muita gente mesmo se sentiu aliviada, e olha que não era para menos.
               A trajetória de Allica e santa Cruz se confundem com os tempos áureos da presença das obrages nos sertões oestinos. Santa Cruz não era nada menos que cunhado do famoso e não menos impiedoso obragero Julio Tomas Allica; um ex-oficial do exército argentino que se envolveu numa revolução fracassada e teve que se exilar no Paraguai. Em 1902 se instalou num pedaço de terra à margem esquerda do rio Paraná. A área ficava dentro do atual território do município de Porto Mendes e hoje em dia o lugar está todo debaixo d'água. Ali ele montou um pequeno porto, o qual batizou de Porto Artaza, numa homenagem à terra natal de sua família, na Espanha.

Julio Tomas Allica. Juntamente com seu cunhado, o famigerado Santa Cruz,
 controlava com mão de ferro sua  obrage no Oeste paranaense.

               Como todos os demais, o porto destinava-se ao embarque de erva-mate e madeira, explorada com mão de obra indígena e paraguaia. Não tinha documento nenhum. Somente em 1914 é que ele conseguiu a legalização da propriedade em seu nome. Eram quatrocentos e cinquenta hectares e eles foram a base de um verdadeiro império extrativo. Em seu auge os domínios de Allica se estendiam por centenas de quilômetros a partir de Porto Artaza, chegando através de picadas até a região de Cascavel e Campo Mourão!
               Allica se revestia de uma personalidade marcante. Homem alto, era do tipo que gostava de se trajar pilchado, como gaúcho, montando um bonito cavalo e chicote de cabo de prata sempre à mão. Não era falante e quando queria dizer alguma coisa berrava em alto e bom tom.
               Em 1919 Allica comandava com mão de ferro mais de dois mil mensus - mão de obra paraguaia em regime de quase-servidão - e suas famílias. O comércio da madeira e principalmente da erva-mate transformou-o em poderosíssimo e inconteste senhor rural. Dentre seus inúmeros bens era dono de mais de quinhentas éguas para o transporte da erva-mate, oitocentas cabeças de gado; milhares de suínos, cabras, ovelhas, éguas de cria, etc. Basta dizer que a exportação de erva-mate de suas propriedades alcançava dois milhões de quilos!
               Sendo engenheiro por formação, soube bem organizar o seu porto, o qual tinha várias comodidades sendo inclusive servido por uma zorra. Mandou represar um riacho próximo, com cuja água produzia eletricidade para as demais instalações. Na sede da propriedade, muito cuidada, se cultivava arroz, milho, feijão, mandioca, cana de açúcar, amendoim, fumo, banana e laranja. Também mandou construir uma magnífica mansão, cercada de lagos e bosques, onde viviam patos, cisnes e animais da fauna regional domesticados.
               No trato de seus negócios Allica não era daqueles que sujava as mãos. Não precisava. Tinha gente para isso. E o maior de seus comparsas era o seu próprio cunhado, o famigerado Santa Cruz.
               Santa Cruz carregava a violência no sangue. Tinha a função de administrador, capitão do mato e capataz. Homem de confiança de Allica. De sua sede, batizada com o seu nome, percorria a imensa obrage montado num cavalo zanho, sempre se fazendo acompanhar por quatro ou seis capangas bem armados e escolhidos a dedo. Sentia prazer genuíno com a matança. Conta-se que ele chegou ao extremo de fazer um cemitério particular e para onde mandava em viagem só de ida, sem piscar, seus desafetos.
               Santa Cruz era um degenerado, do tipo que obrigava o peão, pobre condenado à morte por qualquer bobagem, correr e subir numa árvore qualquer. De longe, na presença de seus asseclas, apostava com quantos tiros derrubaria o infeliz lá de cima. Dizem que ele raramente errava o alvo. Matava e depois enterrava no tal cemitério.
               E assim foi, tanto que o Allica e o Santa Cruz mandaram e desmandaram até 1924 quando a Coluna Prestes - na verdade a Coluna Paulista - invadiu o território oestino. De posse da informação de que Allica havia reunido homens e armas para combatê-los, os militares rebeldes conseguiram prender Santa Cruz e seus capangas.
               A história relata que Santa Cruz, mesmo na presença do temido oficial revolucionário João Cabanas, ameaçou de morte os mensus que o traíssem ou abandonassem a obrage. Falou em castelhano, mas Cabanas tinha a seu lado um intérprete que lhe traduziu de imediato as palavras do capataz. E não deixou por menos; mandou que segurassem o Santa Cruz e lhe aplicou um boa “sova” com a lâmina da espada.
 
O oficial revolucionário João Cabanas,
comandante da “Coluna da Morte”.

               Cabanas, sendo testemunha ocular das barbaridades perpetradas contra os mensus em solo paranaense, ordenou de imediato que todos fossem libertados. Quase duas centenas deles alistaram-se na Coluna e combateram com valentia do lado revolucionário. A maioria, porém, debandou para o Paraguai. Alguns poucos teimaram em permanecer na região, iniciando um convívio pacífico com os colonos que anos mais tarde iriam colonizar essas terras.
               Para Allica e os demais obrageros a decadência teve início com a passagem da Coluna Prestes e se completou nos anos que se seguiram à Revolução de 1930. Esta, com a sua “marcha para o Oeste”, nacionalizou definitivamente a região, fazendo com que as terras que formavam as imensas obrages voltassem para as mãos do governo estadual e federal.
               Por volta de 1941, encontramos um Allica empobrecido, doente e alquebrado, fazendo sua última viagem a Buenos Aires, aonde veio a falecer. Enfraquecera, tentando em vão obter indenização sobre as terras que a Coluna Prestes e a Revolução de 30 haviam lhe tirado. Em Foz do Iguaçu, já muito doente teria dito ao afilhado: y ova morir, mi hijo, em mi tierra! A esposa, Crista Fória Santa Cruz, viveu por muitos anos ainda.A morte levou-a em 1972, com 98 anos, na cidade de Guaíra.
               E o perverso Santa Cruz? Foi assassinado por dois de seus peões onde é hoje o município de Quatro Pontes. Premeditando, simularam um enguiço no automóvel e quando ele foi ver qual era atingiram-no na cabeça com uma pesada barra de ferro. Ficou estendido na mata junto ao veículo até que fosse encontrado alguns dias mais tarde. E quanto aos assassinos? A da verdade deles pouco se sabe a não ser que eram de origem paraguaia. E podia ser diferente?