sexta-feira, 20 de abril de 2012


Companhia Espéria:
Italianada da gema na fronteira oeste.

Parte 1

           Francesco Cinecatti nascido e criado na região do Vêneto, Província de Treviso, nordeste da Itália, era o caçula de cinco irmãos, todos homens. O pai Antoni era um modestíssimo agricultor que aos quarenta e oito anos já estava cansado de lutar contra a maré da vida cotidiana. Um belo dia cansou de vez, somou as economias e resolveu deixar a Itália. Ali não via mais futuro para si e para os seus. Pesava também o fato de que não se acertava com os fascistas de Benito Mussolini, encastelados no poder desde 1922.
           Com o passar dos meses cresceu a vontade de emigrar. Vem daqui, vem de lá, conversa com um, conversa com outro e decidiu vir para o Brasil, arriscar a sorte. O destino era uma das grandes fazendas cafeeiras em São Paulo. Em maio de 1932 desembarcou no porto de Santos – malas e a família. Deixou para trás parentes, amigos e fascistas empedernidos. Francesco tinha na época dez anos.
           Do litoral Antoni subiu a Serra do Mar com destino a São Paulo capital. A idéia era ficar em São Paulo mesmo, mas na primeira visita que fez ao Consulado Italiano foi abordado por um home bem trajado, o qual se identificou como corretor de terras de certa companhia de colonização de nome Espéria, empresa da qual nunca ouvira falar. Mas sabe como é que é, companhia italiana, vendedor italiano, caiu na conversa. Tutti buona gente! Dias depois pegou estrada com destino ao Oeste do Paraná.
           A título de informação Esperia era o nome da península itálica na antiguidade e também o nome de uma comuna italiana na região do Lácio, província de Fronsinone.
           O corretor tivera sucesso na estratégia em vender-lhe a idéia de que estava sendo construída uma pequena Itália num lugar onde já moravam várias famílias de conterrâneos seus. Era mais que uma proposta de negócio, era quase um apelo sentimental. Gente simples como ele que lutando e prosperando em terras de boa qualidade, com clima ameno e, melhor ainda, com baixo preço.
           Muitos italianos estavam indo para a Argentina, mas o corretor desaconselhava, afirmando categórico que por lá qualquer pedaço de terra custava os olhos da cara, o clima não ajudava pois fazia um frio de rachar e, para arrematar, asseverava que as autoridades alfandegárias portenhas eram absolutamente intransigentes em relação aos imigrantes italianos que por lá chegavam. No Paraná seria tudo diferente.
           Em solo paranaense a primeira parada de Antoni foi em Guaíra, cidadezinha controlada pela Matte Laranjeira. Dali, no trem e pelos trilhos da empresa uma curta viagem de 60 quilômetros até Porto Mendes. Pernoite e embarque no vapor Cruz de Malta com destino ao Porto Sol de Maio, em Santa Helena, sede paranaense da Companhia Espéria.
           Desembarcado, Antoni ficou surpreso com as boas instalações que encontrou no porto de Sol de Maio. Chamou-lhe atenção o intermitente vai e vem de pessoas no local. Constatou contente que italiano da gema não faltava. Pois é, o corretor não havia lhe mentido. Pelo menos nisso.
           Hospedou-se provisoriamente com a família num modesto barracão da companhia e no dia seguinte, em suas andanças de reconhecimento pelo lugar levando Francesco a tiracolo, se deparou com uma bem montada serraria, voltada ao beneficiamento de parte da madeira que a Espéria retirava em sua concessão. As tábuas eram usadas na construção das moradias, barracões, chiqueiros, estábulos e cercas na própria colônia. No entanto, a maior parte – falamos em toras brutas - seguia para a Argentina em marombas, que eram uma espécie de um grande assoalho gradeado feito com as próprias toras amarradas umas às outras.
           Constatou também a existência de uma olaria e de um descascador de arroz. Além desses sobressaía-se uma pequena usina para o aproveitamento da cana de açúcar que era cultivada nas redondezas - empreendimento esse que nunca não chegaria entrar em operação. Foi completamente abandonado quando o governo federal desapropriou as terras da Espéria em 1934, desarticulando seu empreendimento.
           Mas a coisa não acabava por aí. Como não poderia deixar de ser a Companhia Espéria havia montado um bem sortido armazém com a função de fornecer gêneros de abastecimento diversos. É claro que com esse “secos e molhados” veio junto o sistema de contas correntes, as tão conhecidas cadernetas onde os colonos podiam comprar fiado e a preços aviltantes as mercadorias que necessitavam para a sua subsistência cotidiana. Algumas vezes saldavam suas dívidas a dinheiro – o que era raro. Geralmente transacionavam com os poucos produtos excedentes oriundos de suas lavouras.
           Para manter seus estoques em dia o armazém supria suas necessidades com mercadorias que vinham da Argentina e de São Paulo via rio Paraná, mesmo porque, excetuando-se Foz do Iguaçu e Guaíra – e olha lá! -, não existia no Oeste paranaense nenhum centro urbano com a mínima estrutura. Sob esse aspecto, as coisas somente começaram a ganhar ânimo a partir do final da década de 1940, quando se intensificou a migração para a região com a vinda de milhares de famílias de colonos do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina.

Como a grande maioria dos colonos [...] não possuía recursos financeiros para pagá-los de imediato, abrigava-se a sujeitar-se às condições que eram propostas estabelecidas pela Espéria. Como os lucros obtidos com a venda de produtos excedentes não eram significativos e os gastos no armazém da companhia se davam de forma constante, o endividamento se prolongava e tendia a crescer com o passar do tempo, acentuando sua dependência (COLODEL, 1988, p. 202).

           Além da colonada italiana Antoni não deixou de reparar em outro pessoal. Haviam outros trabalhadores a serviço da Espéria. Informou-se e descobriu que eram os mensus paraguaios, contratados para o corte da madeira, para o plantio de cana de açúcar e em outras atividades braçais. Ressalte-se que o sistema de exploração ao qual estavam acorrentados esses mensus em nada diferia ao praticado na demais obrages espelhadas pela Região Oeste do Paraná [1].
           Encarado sob a perspectiva do distanciamento temporal o Oeste paranaense, no  agora longínquo ano de 1933, parecia ser um mundo a parte, quase uma Shangri-la!  Distante dos grandes centros decisórios estaduais e nacionais quase não chamava atenção, a não ser pelo fato de ser região fronteiriça com a Argentina e Paraguai.
           Problemas fronteiriços maiores entre as nações do Cone Sul pareciam superados. Nos meios diplomáticos a Argentina havia sido derrotada pela farta documentação e argúcia do Barão do Rio Branco na tão famosa “Questão de Palmas” ou “Missiones”, como insistiam nossos vizinhos do Prata. A decisão em prol dos interesses brasileiros – o nosso uti possidetis - saiu em 1892, arbitrada pelo presidente Glover Cleveland, dos Estados Unidos. Quanto ao Paraguai esse era mantido nos eixos desde o término da Guerra do Paraguai (1865-1870), quando teve sua população e economia destrocada pelos exércitos da Tríplice Aliança.
           Então tudo bem. Bem? Não muito.
          As fronteiras estavam estabilizadas, mas nestas terras brasileiras quem dominava mesmo eram os interesses econômicos argentinos. Concessões legais e invasões ilícitas lhes garantiam o acesso predatório às nossas imensas e inexploradas reservas nativas de erva-mate e de madeira. Com punho de ferro os obrageros controlavam milhares de mensus paraguaios em suas obrages – mão de obra tratada brutalmente, quase servil. Também mantinham a tiracolo a navegação no Rio Paraná, principal via de acesso à região e caminho natural por onde escoavam nossas riquezas vegetais.
           Presença humana brasileira mesmo era raridade; militar ou civil. A Colônia Militar da Foz do Iguaçu, criada em 1889, lutava para sobreviver. Os colonos estabelecidos em suas cercanias podiam ser contados nos dedos. Oeste adentro nem pensar! Isolamento estratégico, premeditado. Com o passar dos anos o Oeste paranaense seria um mundo de obrages e obrageros, e o Governo do Paraná forneceu todo o instrumental legal para tal.

... Continua


[1] A etimologia da palavra região (regio), [...] e as suas fronteiras (fines) não passam do vestígio apagado do acto de autoridade que consiste em circunscrever a região, o território (que também se diz finis) legitima, conhecida e reconhecida, das fronteiras e do território, em suma, o princípio da divisão legítima do mundo social. Este acto de autoridade de direito que consiste em afirmar com autoridade uma verdade que tem força de lei é um acto de conhecimento, o qual, por estar firmado, como todo o poder simbólico, no reconhecimento, produz a existência daquilo que enuncia (BOURDIEU, 1999, p.114).